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Um trovão fez-me despertar do torpor em que me encontrava. Aquela paisagem me deixara extasiado. Quando parti para esta missão em plena Amazônia, não imaginava o quanto pode ser maravilhosa a selva.
Desde pequeno vivi em um domo lunar e assim só conhecia as grandes florestas pelos holofilmes. As florestas lunares, além de notadamente artificiais, não possuiam aquele caos peculiar de uma floresta terráquea.
Aqui era diferente. A majestade e imponência das árvores, confesso, me perturbava. Em todas as direções que olhasse era só mata. Vez ou outra surgiam bandos de pássaros como flamingos, garças, tucanos. Ainda bem que o Tratado Verde, de 2042, preservara toda esta maravilha, que certamente não existiria hoje se não fosse por isto.
Ainda hoje a floresta se recuperava da grande devastação e, se era proibido a todo ser humano com exceção dos índios nativos adentrar na floresta, quanto mais a nós, selenitas, que éramos tão discriminados no Planeta Mãe...
Incumbido de procurar dois foragidos de Plutão, mutantes perigosíssimos que poderiam devastar áreas inteiras desta floresta, eu e mais nove pilotos patrulhávamos a floresta já faziam quinze dias.
Esta missão caiu do céu para mim, que pude presenciar toda esta imensidão verde. Só percebi a pane do motor quando um trovão bem ao lado da nave tirou-me do meu devaneio. Por falar em pane, não descarto totalmente que esta queda tenha sido um tanto... premeditada?
O kit de sobrevivência da nave manter-me-ia vivo por mais de um mês, tempo mais que suficiente para o resgate, mas confesso que não conseguia tirar da cabeça o desejo de nunca mais ser encontrado e passar o resto da minha vida nesta floresta ao invés de voltar àquele satélite chato, a Lua.
Um descampado que, juro, não estava ali segundos atrás, apareceu uns mil e duzentos metros à minha frente e rumei para lá a fim de tentar pousar. A clareira tinha, no máximo, trinta metros de raio. Não era muito, já que a minha nave tinha cinqüenta e seis metros de envergadura!
Meus treze anos de pilotagem na Divisão MHP foram de extrema valia neste momento, mas não impediram que as duas ecoturbinas fossem totalmente danificadas. Vesti meu traje gravitacional, pois meu físico estava acostumado com a gravidade lunar e, sem este traje, não conseguiria andar dez minutos na Terra.
A oeste da clareira, o radar detectou uma fonte e, contrariando as regras mais básicas de sobrevivência, resolvi renovar a água dos reservatórios com a lendária água amazônica. Diziam que esta água poderia rejuvenescer uma pessoa e curar muitas doenças e eu, curioso desde o berço, não iria perder esta oportunidade única.
A nascente ficava num grotão de aproximadamente seis metros de profundidade. Desci por uma árvore que acompanhava o barranco.
A visão era, no mínimo, maravilhosa! A água surgia de um amontoado de pedras e despencava de uns dois metros de altura num laguinho cristalino, de um metro e meio de profundidade e com alguns peixes pequeninos nadando em completa tranqüilidade.
Bebi um pouco daquela água. Tinha um gosto estranho, como se fosse sumo de plantas aromáticas; a princípio pensei que fosse venenosa, mas o sensor não indicava nada. Provavelmente era por eu ter acostumado com a água destilada lunar.
O gosto era estranho para mim, mas muito agradável. Como se sorvesse um néctar dos deuses e sem me dar conta, bebi quase um litro desta água e então resolvi nadar. Tirei o traje e, nem um pouco desconfiado, mergulhei.
A água era estranhamente morna, acima da temperatura ambiente. Quando voltasse iria informar que provavelmente existiriam termas naquela região da Amazônia.
Enquanto nadava, algo como que um reflexo púrpura envolveu a água. Virei-me rapidamente e percebi algo, ou alguém, atrás de uma pedra.
Algo na água começava a me tolher o movimento. Em questão de segundos fiquei completamente paralisado. Aquela água devia ser realmente venenosa, com venenos tão exóticos que o sensor não acusara. Como fui inconseqüente!!! Tentei gritar mas a voz parecia congelada na garganta.
Consegui, após algum esforço, assobiar e qual não foi o meu espanto ao perceber que o ser me imitara com perfeição. Uma nova série de assobios e começou a aproximar-se.
Não fosse a cor púrpura, eu teria certeza de que estava olhando para a mais bela mulher dos quinze planetas. Seus cabelos chegavam até seus pés e os envolviam, parecendo vivos. Tinha quase um metro e noventa e cheguei a pensar que fosse humana, até que vi a membrana entre seus dedos.
Era muito provável que fosse alguma experiência da Engenharia Genética que não fora comunicada. Cheguei a me perguntar como algo tão belo e perfeito não seria comemorado e anunciado pelos cientistas por dias a fio...
Mais calmo, resolvi imitar aquela seqüência daquele clássico "Contatos Imediatos..". Ao terminar a melodia, ela começou a se aproximar de mim e ao entrar no lago começou a cantar. O canto teve um efeito tão paralisante sobre mim que só me restou tempo para tentar gritar...
Meu corpo foi encontrado três dias depois pela equipe de resgate. Estava todo mutilado como se milhares de onças tivessem afiado suas garras nele. A nave, por sua vez, estava em pior estado: não havia mais clareira e árvores de mais de trinta metros cresciam por todo o seu interior. Projetada para agüentar explosões de até dois megatons, a nave parecia um brinquedo de plástico que fora mergulhado em ácido.
Os técnicos continuaram ali por mais cinco dias, recolhendo informações. Não tinham a menor idéia do que acontecera e de como as árvores cresceram tão depressa e muito menos de como os controles de localização haviam sido modificados para indicar que a nave se localizava a vinte quilômetros dali.
A caixa preta apenas informava o momento do acidente e a queda quase suave. Somente com suas informações nem o mais hábil técnico suspeitaria de estrago tamanho.
Observávamos tudo de detrás de uma árvore, na nossa forma invisível. Se assumíssemos a forma real, todos nos veriam e , com certeza, a floresta seria vasculhada milímetro por milímetro e nem eu, nem ela, nem todos os outros seres teriam sossego por meses.
Quando foram embora, ela explicou-me que havia algumas regras que deveria seguir e a mais importante é de que não poderíamos ser vistos pelos humanos. Nem mesmo os indígenas. Explicou-me que os indígenas ás vezes conseguiam nos ver de relance, mas que isso não seria problema, pois seríamos encarados com lendas, como aliás sempre fomos.
Afinal, Iara e Curupira são mesmo lendas. E lendas são para as crianças, não é mesmo?