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- Procurando Mão Negra
Eduardo Valente
Pelo mapa, Mão Preta não deveria estar tão longe. Provavelmente, mais uns três dias de procura e o encontrarei. Espero que o mundo tenha os três dias...
A guerra começou há três anos e meio , mas nos últimos dias transformou-se numa hecatombe. Bombas nucleares estão prontas para serem lançadas e o mundo está virtualmente perdido. Tudo por causa de uma ilha deserta, cheia de gelo, onde descobriu-se um novo combustível, capaz de revolucionar o mundo. Não só não revolucionou, como também levou-nos a esta iminência de extinção.
A ilha pertencia ao Brasil, mas fora declarada pela ONU com área tombada, de patrimônio universal. Quando descobriu-se a utilidade daquele combustível, cento e quarenta vezes mais potente que o hidrogênio e totalmente limpo, o Brasil resolveu ignorar as ordens da ONU e começou a fazer a prospecção do combustível. Satélites confirmaram que, por um capricho da natureza, somente naquela ilha existia a substância, que se renovava de modo incompreensível para os físicos.
As organizações não-governamentais de maior peso mundial foram contra o Brasil, por causa de outra raridade naquela ilha: a descoberta de pássaros dodô vivos lá. Tanto pressionaram, que as nações começaram a fazer embargos econômicos ao Brasil.
A ilha estava fortemente militarizada e o medo era de que, ao invadir a ilha, acabassem com os dodôs e uma fagulha acidental detonasse a jazida de combustível que, conforme previsão dos físicos, causaria explosão jamais vista na Terra desde o surgimento da vida.
Para piorar, países descontentes com o primeiro mundo começaram a juntar-se ao Brasil e a guerra estourou fortemente. O único lugar não atacado era exatamente a ilha, mas florestas do mundo inteiro eram devastadas, as plantações não chegavam a serem colhidas e eram bombardeadas. Apesar da ilha se localizar no Brasil, a guerra deslocou-se para a África e lá já havia feito tantos estragos que a recuperação tornara-se inviável.
O ultimato foi dado, os mísseis armados e resta apenas sete dias para tudo acabar. O motivo da guerra foi esquecido e, apesar de terem feitos as pazes, os países dos dois blocos não conseguem desarmar as bombas. Um humor negro de primeira classe: após ser armado o estopim é irreversível, explodindo tudo após quinze dias. A tecnologia extremamente avançada e a prova de falhas será a responsável pela nossa extinção.
Por que estou nesta floresta? Elementar, ou quase, meu caro leitor... Mão Preta, cujo nome de batismo é Francisco Ramos Camargo Jr, o maior gênio da eletrônica que já existiu, construiu a engenhoca, realizou um desfalque de bilhões de dólares, brigou com o presidente e o bispo, foi caçado, preso, fugiu da penitenciária de segurança máxima e escondeu-se na floresta. Após dois anos de busca, a polícia desistiu de encontrá-lo, sabendo somente que ele estava vivo por seu código pessoal, que por defeito ou modificação, não indicava seu paradeiro. Mais um dos truques de Mão Negra.
O apelido Mão Negra vem de ele ser um negro de dois metros e trinta de altura, tendo sido um grande jogador de basquete, considerado por alguns como o maior da história, brigou com todos do basquete e embrenhou-se no mundo da eletrônica. Foi considerado pela imprensa como um traidor e assim de Mão Dourada (seu antigo apelido), tornou-se Mão Negra.
A despeito disso tudo, Mão Negra evoluiu na eletrônica e tornou-se o gênio que é. Nada lhe era impossível. Todas as maravilhas da eletrônica lhe parecem triviais. Nos últimos anos dedicava-se ao biocircuito, uma espécie de ser vivo eletrônico, capaz de comer, crescer e reproduzir-se.
O estopim eletrônico que tanto nos atormenta foi feito já em seu tempo de prisão. Mão Preta havia feito travas de segurança para que somente com sua assessoria o estopim pudesse ser desarmado. Logo depois de armada a bomba, a paz foi conseguida. Ao tentarem desativá-la veio a mensagem sarcástica: Acesso à Desativação Negado. Vocês Estão Nas Minhas Mãos Pretas.
O pânico só não é maior porque foi ocultado da imprensa e da população a verdadeira gravidade da situação. Convocaram-me para tentar encontrar Mão Preta antes do fim do prazo, o que será um desafio quase impossível, mesmo com toda a tecnologia que possuo.
A propósito, meu nome é Ed Frangone, especialista em rastreamento de pessoas ou, no bom sentido da palavra, o melhor perdigueiro que existe no mundo...
Nasci entre os brancos, mas numa excursão pela África, perdi-me de meus pais e fui adotado por zulus. Minha infância foi marcada por um treinamento excessivo de técnicas de rastreamento e tocaia. Quando tornei-me adulto, cursei as maiores faculdades militares do mundo, conhecendo cada dispositivo de rastreamento como ninguém. Somente uma pessoa no mundo poderia ser páreo para mim. E era exatamente essa pessoa que estava perseguindo...
Eu recebera da Interpol o codinome de Impeesa, que em zulu significava "o lobo que nunca dorme". Mal sabia eu como esse codinome iria ser testado nesta aventura.
Por cinco horas já estou procurando e nem um sinal ao menos foi encontrado. Os instrumentos começam a dar problemas, provavelmente por certos aparelhinhos plantados na mata. Encontrei um e sua tecnologia me deixou surpreso. O cara é mesmo um gênio! No entanto, sua genialidade o acusa... Ele está por perto, provavelmente já me viu e me prepara desafios. Pode vir, Mão Preta, estou mais que preparado...
A noite começa a cair e a primeira tarefa é imposta pelo meu oponente: cada vez em que monto minha barraca para dormir, exatamente vinte minutos depois de armada a barraca, a árvore começa a tombar. Pegou-me desprevenido somente até a segunda vez, mas está me deixando cansado, pois percebo que não poderei dormir até achá-lo.
Longa noite foi aquela... Uma noite de vigília numa floresta assustadora esmigalha os nervos de cada um. Pela manhã, procurei a causa de tantos dissabores e encontrei um dispositivo minúsculo, do tamanho de uma unha de polegar, que soltava um líquido extremamente corrosivo, que dissolvia a base da árvore em questão de minutos sem fazer um barulho. Qual seria a nova proeza de Mão Preta?
Minha pergunta foi logo respondida: um enxame de abelhas veio na minha direção! De todos os lados escutava o zumbido. A morte parecia-me cada vez mais próxima, quando veio-me um pensamento salvador!
Mão Preta estava usando tecnologia, e provavelmente as abelhas estavam sendo atraídas para aquele lugar por algum aparato eletrônico. Como funcionou exatamente quando passei por aqui, existem duas respostas possíveis: ou está na terra e quando passei ativeio-o, ou Mão Preta ativou por controle remoto. Confiante da primeira hipótese, coloquei-me em posição de ataque imediatamente. Debaixo da lona da barraca, desmontei meu rádio e utilizei seu falante para emitir sinais de tal modo que o emissor do Mão Preta entrasse em ressonância e, não aguentando a sobrecarga, explodiria. Deu certo! Perto de uma raiz de uma seringueira, uma pequena explosão denuncia o aparelho e as abelhas somem como que por encanto. De tecnologia convencional, a genialidade de Mão Preta só aparecia no disparador, que era feito de fios de teia de aranha, não chamando a atenção de nenhum trauseunte que passasse por ali até que fosse tarde demais.
No silêncio feito na mata logo após o ataque do enxame, escutei um clic. Vinha de cima das árvores e, de baixo, era impossível de localizar precisamente o local. Como Mão Preta devia ter espalhado armadilhas por toda aquela região, e algumas delas poderiam ser mortais, tripliquei os cuidados.
Na terceira árvore que procurei, uma enorme coruja, de uma espécie que eu não conhecia, alçou vôo. Cheguei ao galho de onde ela voara e minhas suspeitas se confirmaram! As marcas de garra feitas no galho eram artificiais, portanto, a coruja deveria ser artificial também. Os olhos de Mão Preta haviam sidos descobertos, mas era impossível cegá-los. Ou quase.
Procurei na mochila os restos do chamariz de abelhas e descobri que a tecnologia convencional era apenas para fazer funcionar o aparelho. Na verdade o disparador era usado para despistar curiosos. O que realmente disparava o aparelho era um micro-rádio, de menos de um milímetro, feito de material orgânico!
Mão Preta estava utilizando biocircuitos, sua maior paixão e provavelmente minha maior preocupação. Se houver armadilhas maiores utilizando biocircuitos, não poderei desarmá-las, pois minhas técnicas são agora convencionais, de ponta, mas convencionais defronte a biocircuitos.
Sabendo que estava sendo observado pelo céu, resolvi testar que tipo de visão tinha essa coruja, que agora pousava num galho acima de mim, a cerca de dez metros de altura. Primeiro utilizei equipamento de camuflagem, e tornei-me um camaleão. Se me olhasse no espelho, não me descobriria. Ao perambular pela floresta, vi que a coruja acompanhava-me com desenvoltura. Conclusão imediata: visão infravermelho. Seria o mais inteligente para uma coruja, não acham?
Plano seguinte: camuflagem de calor. Esperei chegar a noite, entrei em meu saco de dormir sabendo que teria pelo menos vinte minutos para preparar a armadilha. Liguei o aquecedor de plutônio dentro do saco, vesti-me com a malha de amianto, camuflagem usada pelos mariners americanos na Guerra de Trinidad-Tobago. Deixando a armadilha de calor, para que pensassem que tinha dormido, fugi até uma árvore a vinte metros dali.
Não deu outra. Vinte minutos depois de "preparar-me para dormir", cerca de trinta onças atacam meu saco de dormir e estraçalham tudo. Espero que Mão Preta pense que morri, caso contrário terei sérios problemas em breve.
Um problema imediato é que todo meu material, com exceção de duas armas elétricas e um bisturi laser, que estavam comigo, foi destruído no ataque das onças. Meu tempo diminuira muito e precisava preparar uma armadilha em breve, porque sei que Mão Preta viria pessoalmente verificar se o seu mais recente adversário estava realmente eliminado.
Por causa do cansaço acentuado e do excesso de adrenalina no sangue, foi difícil para mim inventar alguma armadilha muito eficiente e, conforme aprofundava-se a madrugada, minha consciência ia me pregando peças.
Às seis e vinte e três da manhã, Mão Preta chegou. Era mesmo um gigante, mas movia-se com uma desenvoltura impressionante que, somada à cor de sua pele, fazia-o parecer mais uma sombra que um homem. Estava vendo uma lenda viva, e tinha esperança que esta lenda fosse adicionar mais um feito à sua longa lista: salvar o mundo.
Chegando perto do amontoado de pano e sangue (que eu tirara de uma cobra), Mão Preta começou a investigar. Sentando-se começou a ler minhas anotações. Como todo gênio tem seu lado previsível, coloquei no meio das minhas coisas memorandos ultra-secretos, que falavam sobre o desastre iminente e a única salvação nas mãos pretas do gigante que agora lia os tais memorandos.
Vasculhou todas as coisas espalhadas no chão e preparou-se para ir embora quando, já de pé, deteve-se a dois metros da minha armadilha. Dez segundo se passaram e o gênio então se revelou.
"Infantil sua armadilha", disse Mão Preta, " mas louvável sua tentativa. Pode descer da árvore que eu não estou com visão infravermelha como a da coruja e os anos na mata me fizeram notar detalhes que ser humano nenhum nota. Eu tinha certeza que mandariam você para cá, senhor Frangone. Para caçar o melhor, o melhor..."
"Senhor Camargo, o mundo ..."
"...precisa de mim. Eu sei disso. Tudo foi planejado. Desde a sua chegada aqui eu estou monitorando-o com minha coruja. Quando você sumiu, ontem à noite, mandei minhas amiguinhas estraçalhar seus pertences. Outra coisa: meu nome agora é Mão Preta. Eu o conquistei e exijo ser tratado assim."
"Desculpe-me...Como descobriu que eu não estava aqui?", perguntei, curioso.
"Uma cobra sangrando não faz os movimentos que você fez e não espalha sangue daquele jeito. Aliás, você devia ter matado um mamífero pelo menos, para dificultar-me um pouco."
"Afinal, o senhor vai ou não vai salvar o mundo?"
"Isso me lembra um programa antigo, em que o apresentador perguntava para o público qual o final que desejavam. Bons velhos tempos aqueles...O negócio é o seguinte: eu salvo o mundo sob algumas condições..."
"Serão cumpridas, tenha certeza disso..."
"Receberei anistia e terei novamente meu nome no Hall da Fama da NBA serei indicado para os prêmios Nobel da paz, por um motivo óbvio, e de Física. Quero ser o único a ganhar dois Nobel de categorias diferentes no mesmo ano. Sabe como é... Todo gênio tem suas vaidades!".
"Tudo bem, mas qual será o motivo para o prêmio Nobel de Física, e como farei para falar com o governo? Suas onças quebraram todos meus aparelhos."
"Isto aqui responde suas duas perguntas. Agora fale rápido com o chefão!"
Um comunicador com biocircuitos. O negão tinha razão: o Nobel de Física era dele, sem concorrentes por perto. Não podia imaginar um aparelho menor que um punho capaz de transmitir mensagens tão longe, mas tentei sabendo que ia conseguir.
A condição era de que o desarmamento só seria realizado caso os pedidos fossem atendidos. Todos os entraves burocráticos foram por água abaixo e o mundo empenhava-se em conseguir o visto para sobreviência de pelo menos mais algum tempo. Até a próxima guerra, pelo menos...
Três horas depois, chegava por um outro aparelho o documento de anistia e a indicação para os prêmios Nobel. Restava desarmar o detonador, tarefa única e exclusiva do gigante ao meu lado.
"Pode ir em paz. A bomba já não causará perigo. A contagem parou e um biochip contendo certos vírus de computador encarregará de acabar com os demais detonadores no mundo. dentro de seis dias, o mundo não possuirá mais bombas nucleares. Benvindo a uma era de paz, senhor Frangone."
"Como... como você fez isso? Já parou? Você nem se mexeu!"
"O programa que tanto os assustou era na verdade o oposto. Ele não detonaria nada, apenas desarmaria os detonadores eletrônicos que existem em qualquer bomba do globo. Aceita um suco de pitanga?"
"Como vai desarmar bombas que nem ao menos estão ligadas no sistema?", perguntei espantado.
"Um mágico nunca revela seus truques, baixinho! Quer o suco de pitanga ou não?"
Tomei o suco ainda em estado de choque. Durante algum tempo, conversei com Mão Preta sobre os biocircuitos. Perguntei também se Mão Preta voltaria imediatamente para a civilização e a resposta foi irônica:
"Prefiro vida inteligente, meu caro. Hasta la vista, hombre.", disse Mão Preta, virando-se e embrenhando na selva.
"Quando o verei de novo?", gritei por fim.
"Na entrega do Nobel. Isso, é claro, se você tiver convite..."
A gargalhada de Mão Negra rindo-se de sua piada ainda está impregnada na memória. A lenda vive e reaparecerá aos meros mortais semana que vem, em mais um feito extraordinário. Provavelmente deve se teleportar para lá. Não sei se isso é possível, mas se não for, ele o fará ser.
Afinal, é o mínimo que pode-se esperar de uma lenda...