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Eduardo Valente
"Nove horas, então? Beleza..."
Tudo marcado, os seis amigos iriam se reunir na casa do Beto para brincar com a tábua Ouija, ou o tabuleiro dos espíritos. Foi difícil arranjar uma tábua original, mas agora tudo estava certo. Não faltaria nada, nem as velas, nem os trajes de feiticeiros. Enfim, uma tremenda bagunça e uma noite prometedora e divertida.
Judite foi a primeira a chegar, com a tábua e duas velas vermelhas.Vestida de feiticeira, Judite era dos seis a mais mística e possuia uma coleção invejável de cristais e outras bugigangas esotéricas. O Belchior foi o último a chegar, bravo por não conseguir uma fantasia de feiticeiro. Era o mais religioso da turma e achava aquilo mais do que qualquer um uma brincadeira sem sentido. Foi mais por causa da Débora.
"Eu empresto meu chapéu de Touro-Sentado prá você, Bel", dizia Débora, namorada de Belchior, com sua roupa de pagé apache. Débora era a misteriosa, não gostava de falar sobre sua vida, nem sobre seus pais, separados.
"Será que isto não vai dar problemas?", insistia Mumuca, "já ouvi falar tanta coisa disso..."
"Isto é só uma brincadeira com a força da mente", Carlinhos brincava,"nada mais, bobão..."
Os irmãos Mumuca e Carlinhos eram o Batman e Robin da turma. Onde um ia, o outro ia atrás. Sempre com idéias malucas, o constraste entre os dois era dado pela covardia enorme de Mumuca (o irmão menor) e pela coragem anormal de Carlinhos.
Apagaram as luzes e foram para a sala, onde estava a tábua, o triângulo e as velas. Tudo bonitinho (parecia terreiro de macumba, dizia Judite), tudo preparado para a incursão ao "mundo dos desincorporados", como brincava Carlinhos.
Beto, como anfitrião, foi logo tomando o lugar central, segurando o triângulo que aponta as letras e dizendo as palavras tradicionais: "Tem alguém aí?"
Tentaram por cerca de meia hora e enjoaram, pararam para tomar refrigerante e retomaram o serviço. Durante duas horas, nada acontecera, e Carlinhos já dava mostra que queria ir embora.
"O último ônibus é às onze e quarenta e cinco, eu vou perder ele..."
"Eu levo você depois, bobão. Minha mãe vem me buscar..."
Exatamente sete minutos após a meia noite o triângulo mexeu. Não foi de pouquinho, como esperavam, mas deu literalmente um pulo para o local escrito Yes (a tábua era importada). Após o susto, os seis começaram a fazer perguntas, cada vez mais malucas. Sem perceber, já eram duas e meia da manhã e foi o Beto que anunciou:
"Moçada, game over! Tô morrendo de sono e já são... Meu relógio deve estar estragado, que horas são, Judite?"
Judite distraída, olhou o relógio: "Nossa sete e seis, entro no trabalho às oito!"
"O meu também está sete e seis, mas olha só: tudo escuro!", dizia Beto
"Vamos lá fora ver isto... Deve ser um eclipse...", dizia Mumuca.
Tentaram em vão abrir a porta da frente, depois a porta de trás, depois a porta do quarto dos pais do Beto, depois as janela, depois desesperaram-se. Tudo estava lacrado, mas a porta da cozinha não tinha nem tranca! Mumuca foi o primeiro a gritar: Tô morrendo de medo!
Olharam pela janela e lá embaixo todas as pessoas andavam como se fossem autômatos sem vida. Davam um passo e retrocediam, subiam e desciam de um ônibus parado e uma névoa vermelha brilhante flutuava por entre elas.
"Eu falei prá não brincar com isso, eu falei!", gritava Mumuca, o menor da turma, com dezesseis anos.
"Calaboca, Mumuca! Deixa eu ver o que está acontecendo lá embaixo..."
De repente, uma gargalhada num som altíssimo irrompe pela casa. As luzes começam a piscar e a mudar de cor e todos assustados correm para a porta do quarto dos pais do Beto.
"Tem alguém aí?", pergunta Carlinhos e imediatamente o triângulo move-se na direção do sim. Apavorados, os garotos resolvem queimar a tábua, mas o fogão simplesmente não funciona.
Mumuca tenta gritar, mas o que sai é o mesmo choro terrível escutado minutos atrás. Mumuca cai e começa a imitar um bebê.
"Pára com isto, Mumuca, não é hora de brincadeira.."
A resposta é outro choro fortíssimo, fazendo a turma perceber que não era brincadeira nenhuma. Criando coragem, começam a fazer perguntas para o Mumuca.
"Quantos anos você tem?". "Um dia", responde Mumuca,"nasci há um minuto, às sete e cinco. Morri agora..", completa Mumuca, com uma voz assustadoramente infantil.
Todos olham para os seus relógios, que continuam a marcar sete e seis da manhã. Questionando Mumuca descobrem o que realmente acontecera:
"Este fantasma é de uma criança que morreu e estava indo pro céu. Pelo jeito, nossa brincadeira a tirou do caminho certo e fez ela parar aqui..."
"Precisamos enviá-la logo para lá, antes que este mundo a corrompa. Podemos ter em mãos logo, logo, um demônio e não uma criança..."
Começaram a procurar por toda a casa alguma literatura que servisse, mas foi em vão. Nada se adequava ao que estava acontecendo, tudo parecia estar contra eles. Alguns livros estavam totalmente em brancos e outros exalavam um odor tão fétido que era impossível manuseá-los.
Algum tempo depois, Mumuca começava a dar mostras de insatisfação. Andava pela casa como um autômato, sempre chorando baixinho, quase inaudivelmente. O desespero aumentava: será que existiria algum livro que os ajudaria ali? A resposta parecia cada vez mais negativa.
A névoa vermelha brilhante lá fora começava a mudar de cor. Agora passava para um amarelo ainda brilhante. Como ninguém sabia o que significava aquilo, resolveram concentrar as forças na raiz dos problemas: Mumuca, ou o que estivesse em seu lugar.
Enquanto Judite procurava desesperadamente por uma Bíblia, Beto procurava uma cruz, Belchior por uma bala de prata (o revólver ele já tinha achado), Débora fazia perguntas para o Mumuca, que ignorava-a completamente e Carlinhos segurava o choro de medo, observando pela janela a névoa que mudava novamente de cor.
Foi Beto que, num lampejo, deu uma solução: exorcismo! Mas quem o faria? Como o único que freqüentava igreja ali era o Belchior, foi unanimamente escolhido para ser o exorcista, a despeito de seus protestos.
"Isso é coisa para pastor pentecostal !", gritava Belchior.
Com uma cruz numa mão e a Bíblia e um terço na outra, Belchior tremia da cabeça aos pés. Mumuca estava se transformando, e seus olhos começavam a tornar-se sombrios e sua face a se enrugar. Poderia tornar-se violento de uma hora para outra. Era preciso extrema cautela e coragem. A primeira tudo bem, mas a segunda faltava a olhos vistos para o Belchior.
"Vade Retro, Satanás", gritava Belchior, "some daqui, bicho dos infernos".
Mumuca limitava-se a olhar com desdém para o grande exorcista, enquanto Belchior parecia alterar-se cada vez mais.
"Volta para onde vieste, filhote de Belzebu! Foge deste lugar, calhorda!"
Quinze minutos de gritos depois, Mumuca dava mostras de estar enjoado da brincadeira e, sem dar a mínima chance, golpeia Belchior com a cadeira que na qual estava encostado. Semi acordado e com uma fratura exposta na perna, Belchior agonizava. Mumuca pula para cima dele e para horror de todos, quebra-lhe o pescoço com apenas uma das mãos.
Levantando o corpo sem vida de Belchior, Mumuca divertia-se. A gargalhada ressoava pela casa e a névoa lá fora se tornava mais sombria. Por cerca de cinco horrendos minutos, Mumuca foi arrancando pedaços do corpo de Belchior e atirando nos outros quatro, como quem atira bolas de neve.
Beto, não aguentando mais, avança em direção de Mumuca que com uma jinga de corpo, faz Beto ir de encontro com a parede. Ignorando a dor do nariz quebrado, Beto pega a arma que Belchior encontrara e atira em Mumuca, sem efeito algum. Restava mais duas balas na arma e Beto estava pronto para atirar novamente, quando Mumuca o deteve com um gesto da mão.
"Socorro! Ele está entrando na minha cabeça!", gritava Beto. Aos poucos Mumuca faz Beto ir em direção de Judite e a encurrala num canto da cozinha. Beto encosta a arma no peito de Judite e, apavorado, tenta não puxar o gatilho. A arma vai passeando pelo corpo de Judite, até chegar à altura de sua cabeça, quando é disparada.
O cabelo de Judite move-se na sua nuca e ela cai morta aos pés de Beto que, desesperadamente ainda tenta livrar-se do domínio de Mumuca. Um longo minuto depois e tudo está acabado, com Beto caído junto a Judite, morto com um tiro na cabeça.
Restavam apenas Carlinhos, que continuava choramingando em desespero perto da janela e Débora, batendo desesperadamente na porta de entrada.
De repente, Carlinhos tem uma idéia que pode salvar aos três. Tudo resumia-se a guiar o fantasma do bebê para o lado da luz. Seu cursinho de psicologia por correspondência finalmente poderia servir para alguma coisa. Só restava bolar a estratégia de ataque.
Com Mumuca voltando ao seu estado de autômato, Carlinhos aproxima-se de Débora para contar-lhe o plano. Débora acha ótimo e resolver mostrar ao Mumuca onde é que fica a saída.
Cautelosamente, Carlinhos se aproxima de Mumuca, com Débora logo atrás. Mumuca percebe a aproximação e vira-se na direção deles e exclama:
"Eu sei o caminho, mas não vou para lá! Aqui é melhor, mais sombrio e com mais sangue..."
Realmente, as paredes estavam todas vermelhas de sangue e lá fora a nevoa estava quase negra e começava a entrar pelas frestas da janela. Carlinhos tenta então sua última cartada. Chega bem perto de Mumuca e sussurra: "Mas aqui não tem mais doces..."
Mumuca pára e fica pensativo. Começa a dar mostras que é possível convencê-lo. Carlinhos aproxima-se e tenta dar o golpe de misericórdia.
"Aqui também não tem mais pizza..."
Mumuca sorri, fazendo Débora dar um pulo para trás. Carlinhos não se mexe e qual não é o seu desespero ao ver na mão de Mumuca uma pizza de calabreza!
"Tééééé! Resposta Errada!", grita Mumuca, dando um soco em Carlinhos com tal força que faz sua mão entrar no peito de onde, todo orgulhoso, Mumuca arranca o coração de Carlinhos ainda pulsante.
"Quer um pouco? Está fresquinho...", fala Mumuca à Debora que, ao invés de pavor, aparenta extrema indignação.
"Isto não vale! O Carlinhos era meu! Criança mimada..."
"Desculpe, mas acho que me empolguei demais. Na proxima vez todos serão seus...", desculpa-se Mumuca.
"Só porque você tem apenas um minuto de morte não significa que pode ir quebrando as regras assim! Precisa aprender logo para não se machucar. Lembre-se: eu posso te machucar, idiota..."
"Mas afinal, eu matei o Carlinhos e o Belchior e você matou o Beto e a Judite. meio a meio é a regra, lembra-se?"
"É a regra para demônios de mesma idade. No caso de um mestre e um aprendiz, o mestre leva tudo. Eu fui até boazinha com você ao deixar você matar o Belchior e você me apronta uma dessas... Aonde vai parar o mundo?"
"Mais uma vez peço desculpas, vossa excelência. Garanto que nunca mais ocorrerá erro de tal espécie!"
"Para o seu bem espero que sim. Só o perdôo porque a idéia do relógio parar às seis e sessenta e seis foi diabólica, fenomenal..."
"São seus olhos, minha cara, são seus horrendos olhos..."
Enquanto isso, lá fora, o relógio badalava oito horas e a névoa nunca parecia ter estado lá. Dentro da casa, seis corpos testemunhavam um capricho dos deuses, ops!, diabos...
"I'll be back!", gritava o demônio que estivera em Débora, atravessando o teto numa gargalhada debochada...