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- Gaia, Gaia...
Desde o dia em que começou este pesadelo, não houve mais descanso. Eles estão por toda parte. Olho para o céu e estão ali. Olho para o mar e vejo milhares deles. Nas matas há cúmplices também.
Não há escapatória. Gaia está furiosa e nenhum de seus filhos pródigos irá escapar da ceifa.
Quatro bilhões de anos tornaram-na muito esperta! Começou aumentando a temperatura e a abrir espaço em seus escudos de proteção para que raios letais vindos de outro cúmplice seu, o Sol, queimassem as plantações. Muitos filhos bons morreram, mas era um preço baixo e necessário para a devida purificação.
Com a aumento da temperatura, as águas invadiram as cidades, os ventos fustigaram as populações montanhesas por meses e o Sol continuava queimando a tudo e a todos.
Gaia realmente enlouquecera. E os culpados por isto eram seus filhos rebeldes. A solução encontrada por ela era bani-los para sempre da casa materna, uma espécie de mãe que deserda um de seus filhos para que os dmais sobrevivam.
Foi um trabalho de ourives, não nego. Ao ver pela televisão (quando ainda existia televisão, bem entendido) cidades como Nova York, México, Rio de Janeiro e até países inteiros como Japão e Inglaterra serem engolidos pelo chão e pelo mar, sepultando todos seus habitantes, percebemos que havíamos feito algo de muito errado e alguém, em algum lugar, não gostara nada daquilo.
A princípio supúnhamos que fosse a terceira guerra mundial, mas os países estavam num raro e longo momento de paz, desde a Conferência de Cuzco, em 2016. Logo percebemos que era mais que uma "simples" guerra mundial.
Um a um, todos foram sendo exterminados. Os pássaros, como kamikazes emplumados, derrubavam todos aviões. Nuvens de insetos devastavam o que restava das plantações e não havia inseticida suficiente para dar cabo deles.
As algas marinhas diminuíram a produção de oxigênio e muitos proscritos morreram asfixiados. Os animais selvagens haviam desaparecido como que por encanto. Com certeza estavam nos últimos reservatórios de oxigênio existentes.
Se alguém entrasse num barco, as águas se transtornavam e o infeliz era rapidamente engolido pelos peixes, também cúmplices.
Mesmo dentro de casa não estávamos protegidos. Legiões de abelhas, ratos e outros bichos entravam por qualquer fresta que houvesse e exterminavam os que estivessem dentro das casas.
As selvas e os parques, estes agora irreconhecíveis, eram lugares de morte certa. As árvores, com nefasta precisão, derrubavam galhos contra os transeuntes.
Nos desertos, Gaia ampliava o poder dos raios solares, chegando a vaporizar muitas vilas.
Nós havíamos sobrevivido somente porque estávamos com outros sete astronautas na Estação Espacial Internacional, orbitando a Terra. Pelo monitor, vimos toda a Terra sendo modificada sem podermos ajudar em nada. Quando o suprimento de oxigênio estava no fim, tivemos que voltar. Ao pousar, percebemos a desolação e ficamos desesperados.
Cinco de nós morreram na hora que saíram correndo como doidos para fora da nave. Não havia oxigênio para respirar e assistimos todos morrerem sem poder fazer nada...
Dos quatro que restaram, Paulo e Yuri foram exterminados por um bando de urubus que jogavam pedras do tamanho de uma bola de basquete em nós. Inexplicavelmente, somente eu e Karen estávamos vivos! Sabíamos que isso seria apenas até o suprimento de oxigênio chegar ao fim... Gaia sabia disso e ficava apenas nos observando pelos olhos de dois bem-te-vis pousados num galho de uma árvore próxima.
Chego a pensar num Juízo Final, como aquele que eu escutava na Escola Dominical quando era criança. Um Juízo Final verde! Convenhamos, Gaia tinha classe...
Devíamos ser os últimos representantes da raça humana na Terra. Pelo menos. pensava eu, morrerei ao lado de alguém tão agradável como Karen...
Algo então me surpreende: é uma fruta! Há dois dias e meio sem comer nem penso se é venenosa ou não. Dividimos a fruta e comemos avidamente. Não era.
Karen nota que o indicador de oxigênio começa a indicar positivo e começo a achar que havia uma luz no fim desse túnel que estávamos. Uma luz, com certeza, verde...
Quando o nível de oxigênio chegou a um nível que possibilitava a nós respirar, tiramos nossos trajes espaciais e começamos a seguir por onde Gaia nos conduzisse.
Vagamos pelo mundo por meses e Gaia nunca mais nos decepcionou. Éramos alimentados com toda espécie de fruta e carne. Quase não havia mais resquício da civilização forte e poluidora que dominara a Terra por milhares de anos. A civilização sumia fora e dentro de nós, que estamos totalmente integrados com o verde que nos rodeia. Karen, com certeza, está muito mais bela com esta vestimenta de folhas de parreira...
O mundo parecia um imenso lençol verde. Na primavera, Gaia nos indicou o caminho que deveríamos seguir: nossa derradeira viagem.
Andamos em lombos de búfalos, dorsos de golfinhos e voamos suspensos por condores. Era maravilhoso. Sentíamo-nos como Adão e Eva, com esta total comunhão com os bichos.
Depois de duas semanas de viagem, chegamos a uma grande ilha que surgira do mar. Tinha o tamanho de uns dez alqueires e em seu centro geográfico erguia-se, imponente, uma montanha totalmente composta de pedras negras como a noite. Havia quatro rios que nasciam desta montanha e desembocavam no mar em ruidosas cachoeiras
Duas palavras saíram de nossas bocas. A primeira quem disse foi eu:
- Atlândida!
- Éden, complementou Karen.
Chegando à Ilha, verificamos que não éramos os únicos poupados. Haviam casais de todas as tribos, povos e raças da Terra. Todos tão abismados quanto nós.
Os animais eram diferentes, mas lembravam os que vi certa vez num analisador de sonhos, quando observava os de uma criança recém nascida. Certamente tinham sido afetados pela extrema radiação que afligira a Terra por meses.
De repente, uma voz que parecia vir de todos os lados falou como um grande trovejar. Todos entendiam, apesar de não falarem o mesmo idioma:
- Vocês são os escolhidos. Por sempre terem respeitado a mim e a minha serva Gaia, mereceram ter uma nova chance pra provar que são dignos do meu perdão. A Terra será habitada por cinco casais. O casal de astronautas viverá aqui no Éden. Os demais serão enviados a outros mundos para que possam povoá-los e levar minha mensagem a todas as criaturas do Universo.
Três bombas de uma vez só! Estava no Éden (Karen tinha razão...), havia outros mundos povoados no Universo e, principalmente, escutara Deus, o Altíssimo!
Todos os casais foram embora nas asas de anjos, ou pelo menos achei que o fossem, apesar dos longos bicos dourados.
Quando todos já haviam ido, o Altíssimo nos disse que poderíamos comer de todo e qualquer fruto que encontrássemos, com exceção de duas macieiras de uma praia a Leste ( já escutara esta história antes. Aonde foi mesmo?).
Por anos vivemos ali em paz, até que uma serpente (por que nós não íamos com a cara desta serpente?) quis nos induzir a comer as maçãs proibidas. Ela nos dizia que as frutas trariam uma força sequer imaginada por nós, que nos transformaria em réplicas de Deus, etc. e tal.
Karen não lhe deu ouvidos. Assobiando, chamou um serpentário muito nosso amigo que perseguiu a serpente que fugia em fúria e pânico até dar cabo da maldita.
Um trovão se ouviu. Logo depois um vento muito forte nos carregou para a Praia Leste, a tal das macieiras, e deixou-nos lá. O silêncio era tão assustador que segurei em Eva, digo, em Karen, pois sabia que o medo era mais ameno quando partilhado a dois. Experiência própria!
Todos os seres estavam calados. De repente, um relâmpago desceu dos céus e fulminou as duas árvores, chegando a vitrificar a areia em volta.
Ainda aturdidos, pensamos que tínhamos falhado no teste, mas o tempo mostrou que não. Fomos bem sucedidos!
Hoje estou muito velho. Meus novecentos e trinta anos já pesam demais em minhas costas, mas meu trabalho está feito. Meus filhos, filhas já têm netos. Nossa oitava geração já ensaia os primeiros passos. Karen foi-se há tempo e sinto que é chegada a minha hora.
Volto à Praia da Benção, onde existiam os abacateiros, ou seriam macieiras? Macieiras, isto! Volto lá, e entro na água. Um golfinho vem me saudar e afago longamente sua cabeça. Leva-me então para junto do Pai. A mão acolhedora me acolhe e já vejo ao longe minha amada Karen.
Deus nos dera uma segunda chance e, com a ajuda de Gaia, nós a aproveitamos...