Oficina de Musicalidade 03 - Musicalidade e Interpretação

O ato de interpretar é um dos milagres que mal compreendemos.

O que acontece no momento em que interpretamos uma música, ninguém, nem às vezes o próprio intérprete, consegue definir.

Esta é talvez, a fase mais maravilhosa da música, justamente pela sua curta, porém intensa duração.

O que nos faz querer cantar uma música? Não sei. Quem souber que me diga... A motivação é ao mesmo tempo, variada e misteriosa, básica e complexa, humana e divina. É algo que surge sem o menor aviso e usa frases no imperativo: CANTE! E assim obedecemos a este algo...

A única coisa que tenho certeza é que depois de cantar percebemos que algo de muito importante aconteceu, mas não conseguimos dizer o que... Isto ocorre porque a música é um tipo especial de arte, que sofre uma transformação muito peculiar enquanto é executada, como veremos agora...

A música é o único tipo de arte que varia de acordo com a interpretação, com a compreensão que fazem dela. A partitura em si não é música, mas ao ser tocada torna-se música para depois tornar-se emoção.

Então, a música é arte dinâmica, que aparece e de repente some, sem sabermos para onde foi. O intérprete é o dono deste dinamismo. É ele que indica de onde vem a música e para onde ela vai. Sem o intérprete, a música perde seu significado. É por isso mesmo, o elo mais significativo da nossa trindade. Ele é o condutor. Sem ele, compositor e ouvinte não têm razão de ser.

Com a música, acontece um fenômeno interessante: durante a interpretação de uma música, ocorre também composição, ou seja, enquanto canta, o intérprete está na realidade tornando aquela música sua obra, dando vida à ela. Quando a música acaba, os créditos voltam ao compositor, e tudo o que resta são lembranças, aprovando ou reprovando o resultado.

É isso que precisamos ter em mente quando cantamos. Durante sua execução, a música é sua, e ninguém pode tirá-la de você. Como é uma posse efêmera, deguste o tempo em que a música torna-se sua, para que ao terminar a música, você esteja com um sorriso de dever cumprido.

O que diferencia uma música insossa de outra que “arrepia os pelos do braço”? A interpretação! A diferença entre interpretações é que consiste o tempero da música. A qualidade do tempero e do modo de preparo da música será provada pelos nossos ouvidos, para ser processada em emoções novamente. Resta ao intérprete não deixá-lo com “dor de barriga musical”, conhecida como dor de ouvido!

Quando cantar, tempere sua música. Ponha sal nos pontos e na medida certa, utilize temperos exóticos, como ritmos e vocalises diferentes. Invente temperos, crie aromas, enfim, faça de sua música um prato de primeira linha, deixando todos de água na boca.

Se preciso, sirva quente ou frio, de acordo com a ocasião. Cozinhe mais ou menos, dê uma dourada, etc. Todo prato é mais gostoso quando feito com carinho, e com a música acontece a mesma coisa... Use carinho a gosto, de preferência em abundância.

Com já dissemos antes e ainda vamos falar bastante, a prática realmente leva à perfeição! Não adianta ter uma garganta privilegiada, um timbre raro, um ouvido absoluto se não for exercitado a todo momento. Interprete sempre! Cante músicas mentalmente quando não puder fazê-lo de verdade, mas cante!

Invente vários modos de cantar a mesma música, teste seus graves, seus agudos, seu volume, aprenda estilos e escolas diferentes de música. Desafie-se a ultrapassar seus próprios limites.

Com o tempo, você verá que os limites que você achava que existiam estão bem mais distantes que o imaginado. Chegará o momento em que você começará a duvidar da própria existência de um limite. Aí, a música começará a ser para você mais que um dom, uma função orgânica, como respirar.

O caminho é longo e existem vários desvios. O momento de avançar não deve ser prorrogado, e somente quem não tem medo de ir para frente é que chega ao final com o sorriso de dever cumprido.

Portanto, cante!

Escolha uma música bem conhecida sua e cante-a de vários modos. Quanto mais, melhor. Escute-se bastante, e descubra suas falhas, ou melhor, aonde você não está contente com o resultado. Isto fará você descobrir-se como intérprete...