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- Oficina de Musicalidade 02 - A Trindade Musical
A musicalidade, assim como o teatro, tem seus atores, que neste caso são em número de três, ligados de tal modo que podemos falar em um único autor.
É sobre esta trindade musical que iremos discorrer neste capítulo. Os três atores desta trindade têm nomes conhecidos: compositor, intérprete e ouvinte.
Das três partes de transmissão de emoções, a mais misteriosa é sem dúvida a composição. Os compositores estão sempre cercados da aura de sabedores de ciências ocultas e detentores de mecanismos para comunicar-se com Deus. O compositor é aquele que, de um sopro divino ou humano (quem no fundo se importa, se é boa a canção?...), cria um ser de dimensão atemporal e sobrenatural chamado composição, que nos toca de forma particular e diversa, injetando vida a tudo que toca. Este criador de vida é a prova viva da imagem e semelhaça da raça humana com Deus.
Em parte é verdade, mas o ato de compor é antes de tudo uma qualidade inerente à raça humana, e portanto, a cada um de nós. Sem percebermos, compomos a todo momento, pois precisamos transmitir emoções. Se estamos transformando emoções em algo racional, estamos usando a musicalidade e portanto, compondo, mesmo que este ser por nós criado não seja considerado pelos técnicos como música.
A simples mudança de entonação numa frase é composição. Quem nunca cantou na vida? O cantar é composição, mas isto será visto mais à frente. Quem nunca ouviu uma música na vida? Quem nunca imaginou a si próprio compondo, junto a um violão ou piano, que atire a primeira pedra.
O fato é que compomos, mas sempre estamos aquém do nosso limite. Por mais que a ciência tente provar, se é que tenta realmente, nosso limite musical nunca é atingido. Não importa se você é um privilegiado com o dom da música ou não. Ponha uma coisa nesta sua cabeça, ou melhor, neste seu coração: você pode e deve compor! E nunca dar-se por satisfeito. A insatisfação no final de uma música composta (ou interpretada, ou ouvida) é sinal de que você, ainda que inconscientemente, sabe que seu limite não foi atingido. A satisfação, por sua vez, é resultado da descoberta de que o limite é ainda maior do que você pensava.
Estamos entendidos? Ótimo!...
Toda composição começa com um tema. E o que vem a ser um tema? Simples! Dom de Deus!
Vamos raciocinar... Como é que aquela canção surgiu? O que havia antes dela? Nunca saberás, caro amigo... O certo é que num momento muito especial, único e imprescindível, Deus disse a você: “Faça-se o tema”. E o tema se fez. E viu Deus (e você também) que o tema era bom. Alguma sensação de deja vú? Pois é isto mesmo: compor é repetir à sua maneira o ato da criação! É imagem e semelhança de Deus!
Também percebemos que existe sempre co-autoria: é você e Deus, juntos, criando. Se quiser parceiro melhor, me perdoe, mas está sendo no mínimo ingênuo e ,com certeza, superestimando-se...
Porisso, ao compor, volte-se à sua obra e veja como ela é boa. Não é boa? Comece de novo, como um oleiro faz e refaz um vaso de barro até ficar satisfeito.
O compositor não ousa superar o criador, mas torna-se cúmplice da criação, numa espécie de show particular. Enquanto compõe, o resto do mundo ainda não tem acesso a sua obra, mas lá está ele, o compositor, a ordenar às emoções:
“Ó meu mar de emoções, que grandes vagas cor de ouro venham do leste, que um pilar de água eleve-se a noroeste e que o Sol nasça azul, como os olhos que a lua deveria ter.
Ó meu céu de emoções, que as estrelas formem círculos e outras figuras geométricas. Surpreendam-me, ó astros e mostrem-me o amanhã desta canção.”
E assim a criação vai sendo silenciosamente musicada. E viu o compositor que seu limite era maior do que ele imaginava e achou muito bom.
A composição tem sua maneira peculiar de ser entendida por cada pessoa. Descubra a sua e invente novas formas. Quando você tiver noção do que está ocorrendo com você naquele momento, considere-se o mais feliz dos homens, pois estás a criar. Assine a sua obra e prometa melhorar na próxima, mesmo que tenha sido a sua obra prima. Isto é musicalidade, isto é compor.
Antes de falarmos sobre as outras duas pessoas da nossa trindade musical, vamos conhecer alguns compositores que se tornaram célebres...
Os Papas
Para quê falar sobre compositores? Para que possamos compreender, ainda que imperfeitamente o ato de compor através de gênios nesta arte. E também para que percebamos o quanto um homem pode transcender sua vida ao realizar o ato de compor. Homens que eram dois: o natural e o compositor. Às vezes conhecendo-se mutuamente, às vezes dissociados de tal maneira que um nunca tinha sido apresentado ao outro. Alguns imersos em tristeza, outros em alegria, mas todos imersos num oceano musical que vivificava-os de tal maneira que a própria vida às vezes lhes pedia licença e retirava-se, por achar-se indigna de estar ali.
Schubert (1797 -1828)
Viveu na mesma cidade que Beethoven, mas não foi reconhecido em vida. É o autor da “Sinfonia Inacabada”. É talvez o mais melancólico de todos os compositores.
Num diálogo entre uma jovem e Schubert, percebemos a magnitude de sua tristeza:
“Diga-me, senhor Schubert, só escreve música triste?”, pergunta a moça.
“Existe outra?”, responde Schubert.
Tinha ele duas vidas: a terrena, que era pobre, mas alegre e outra musical, que era riquíssima, mas extremamente melancólica. Nesta vida musical é que irrompe o ser maior de Schubert; o pobre professor assistente de Liechtenthal torna-se de súbito criador e imperador sobre um império de emoções que o mundo não compreendeu.
“Tal qual sinto, escrevo.”, dizia ele, que morreu com apenas trinta e um anos, deixando a nós um legado de oito sinfonias, aproximadamente 600 canções e óperas, missas e muita música de câmara.
Beethoven (1770-1827)
Foi o rebelde solitário. Da obra de Beethoven sentimos duas coisas: liberdade e solidão. Gênio entre os gênios, Beethoven foi o grande compositor que quebrou as regras vigentes e criou obras de uma beleza que a nós simples mortais parece divina.
Suas sinfonias são reconhecidas entre as maiores obras da humanidade. A Quinta e a Nona são obras-primas que traduzem uma emoção que poucos conseguiram na história.
Seu lema, escrito no topo de seu diário:
“Faze o bem onde puderes, ama a liberdade acima de tudo e jamais negues a verdade, embora estejas na frente do trono.”
É o primeiro a escrever a música tal qual a sente, fazendo suas próprias regras, criando e recriando a sua criação, num requinte de liberdade ainda não conhecido no mundo musical.
Compunha sob severa rigidez. Suas obras surgiam da obsessão de um criador num quarto escuro, longe de tudo e de tudo, dizendo a todo instante: faça-se música. E a música se fez.
Em sua morte, o maior poeta da Áustria, Grillparzer, dedica-lhe a oração fúnebre:
“Foi artista, mas também homem, e homem no sentido mais elevado e completo. Por se afastar do mundo, chamaram-lhe hostil, e por evitar o sentimento, chamaram-lhe frio. Ah, quem sabe que é inflexível não foge! São sempre as pontas mais finas que mais facilmente se embotam ou quebram. O excesso de sentimento foge ao sentimento! Ele fugiu do mundo por não achar em sua alma cheia de amor meios com os quais se lhe pudesse opor. Afastou-se dos homens depois de lhes haver dado tudo e nada receber em troca. Ficou sozinho, por não lhe ser possível encontrar um outro “eu”. Mas até ao túmulo conservou um coração humano para com todos, e foi paternal para os seus.”
Mozart(1756-1791)
Ninguém mais que ele personificou o divino musical. Invejado por muitos, idolatrado por muitos, Mozart teve vinte e nove de seus curtos trinta e cinco anos de existência dedicados a uma profusão de composições, trazendo em todas a marca do gênio. A primeira foi com seis anos e criou obras-primas como “A Flauta Mágica”, “Don Giovanni” e “Requiem”.
Apesar de seu gênio, não encontrou o devido reconhecimento em sua vida. Quando morreu, foi depositado em vala comum e um único cão velou-lhe o túmulo.
De criança-prodígio, a ponto de um grande compositor de óperas daquele tempo exclamar: “Essa criança fará com que todos nós sejamos esquecidos...” até ao compositor de clássicos universais, com “As Bodas de Fígaro”, Mozart viveu num mundo de reprovação, onde suas obras não eram aceitas e quase sempre era vaiado pelo público.
Tinha assim, duas vidas: a alegre e jovial, de onde vinham suas obras e a realisticamente injusta, onde passava fome, morrendo na mais completa miséria, com a “Flauta Mágica” sendo aplaudida e o seu “Réquiem”, sua mais bela obra, inacabado.
“Gênio é aquele que nenhum professor consegue arruinar”, disse certa vez Mozart. Acrescentemos: “e nenhum destino”.
Bach (1685 - 1750)
Os entendidos dizem que é o maior músico que já viveu. Mestre da música polifônica (que parecem várias músicas diferentes que, tocadas junto, harmonizam-se). Bach foi o modelo de músico da fé. Em todos seus trabalhos, começava com as letras J. J. (Jesu juva) e terminava com S.D.G. (Soli Deo Gloria).
Tinha em Vivaldi, um outro grande compositor, autor do “Glória” e das “Quatro Estações”, seu amigo e inspirador.
Viveu numa vida restrita: palácios e igrejas. Ao mesmo tempo vislumbrava um horizonte que se estendia por toda a vastidão da terra. A universalidade de sua música pode ser percebida até nos dias de hoje: sendo protestante ferrenho, sua música é hoje tocada tanto em templos protestantes como católicos, e ainda em muitos lugares não ligados à vida sacra.
Deixou-nos 58 grandes álbuns, com toda a sua obra, além de descendentes que seguiram a carreira de músicos e nos trouxeram um pouco mais de maravilhas a este nosso mundo.
Bach, que em alemão significa regato, motivou o seguinte comentário de outro mestre, Beethoven:
“Não devia ser Bach, devia ser mar...”
Wagner (1813 - 1883)
O mestre da ópera. Rompeu com estilos, enfrentando muitos inimigos e opositores. Teve talvez as reações mais inflamadas do público às suas obras, a favor e contra.
Seus partidários consideravam-no um deus, enquanto seus opositores o julgavam demônio, desleal, egoista e sem caráter. O deus e demônio que era Wagner, símbolo de uma época de rompimento com o passado, tem uma bibliografia ainda mais extensa que a de Beethoven. Suas obras foram realmente novas, no mais puro sentido musical da palavra novo. Wagner era ao mesmo tempo, criador e criatura de suas obras, fazendo da história de sua vida um enredo de ópera como as belas que escrevera.
Compôs a ópera “Tanhauser” e “O Anel dos Nibelungos”, que contém a famosa “Cavalgada das Valquírias”.
Seu credo era: “Creio em Deus, em Beethoven e em Mozart.”
Händel
Nascido no mesmo tempo de Bach e em cidades não muito distantes, era o oposto de Bach. Lutou contra o destino e personificou a força de vontade. Teve que sair de seu país e conseguir a glória bem depois. No entanto, foi junto com Bach os dois grandes gênios da música alemã do século XVIII.
Teve paralisia e curou-se. Lutou contra tudo e todos e venceu. Um dia, estava cego do olho esquerdo e morre nove anos mais tarde, completamente cego, numa sexta-feira santa com, conta-se, desejava morrer. Foi sepultado com grandes honras o vencedor Händel, agora Haendel, que não poupara nem o próprio nome em nome de um sonho.
Sua obra mais conhecida: o oratório “O Messias”. Sua música mais conhecida: O “Aleluia”, que fez com que na Inglaterra os ingleses o escutem até em pé.
Disse certa vez Madame de Staël, com grande acerto, que Michelângelo foi o pintor da Bíblia. Haendel foi o seu compositor.
Domar as Emoções
O que vemos é que em todos os compositores manifesta-se um desejo: o de domar as emoções. O compositor colhe a emoção, amplifica-a, transformando uma gota em um grande mar, filtra esta emoção com sua musicalidade e trasforma-a.
Compondo, ele controla forças que só Deus e ele conhecem. Ele cria. E ele volta seus olhos e verifica que o que fez foi bom...
Lembra-se do provérbio: “a prática leva à perfeição”? Pois é...Para compor bem, é preciso compor muito. São raras as vezes em que uma música sai tão fácil que percebemos imediatamente que se trata de um presente de Deus.
No geral, meu amigo, é um por cento de inspiração (o tema) e noventa e nove por cento de transpiração. O divertido é justamente a polida. No resto, agradeça a Deus.
Abra a Bíblia num salmo e capte o sentido. Componha, então. Seja uma música ou só uma letra inspirada naquele salmo, faça sentindo a quantidade enorme de emoção que você consegue transformar em música.
Faça isto toda vez que puder, aumentando a carga emotiva. Você verá o prazer que isto dá e a satisfação de ver algo que você julgava impossível estar realizada à sua frente.
É uma honra imensa ter um parceiro como Deus. Comemore com Ele então!
Agora, vá de encontro à natureza e compreenda, ao seu modo, a explosão de vida que descortina-se ante aos seus olhos. Tente compreender a emoção de uma planta, de um pássaro, de uma montanha. Ela existe e você pode compreendê-la somente através da música. Pratique, meu amigo, pratique sempre este maravilhoso dom!