Serra dos Órgãos - Petrópolis a Teresópolis a pé

06 a 10 de setembro de 2000

Quarta, dia 06

Saí do serviço às seis da tarde, já angustiado com a espera para começar esta, que é considerada a mais tradicional das travessias brasileiras, o trekking pela Serra dos Órgãos, de Petrópolis a Teresópolis.

Informado por várias pessoas sobre as dificuldades que encontraria, foi uma neura total os dias anteriores, preparando a mochila, verificando o peso e o volume da mochila, checando ítem por ítem para ver se não está faltando ou sobrando nada... Teria que levar agasalho para o frio, anorak para o vento e a chuva, um bom saco de dormir, lanterna, gorro, luvas. Verificava todos os dias que tempo iria me encontrar lá, etc, etc. Mas enfim, o dia chegou!

Nove da noite e estava na estação Vergueiro do metrô paulistano, começando a conhecer as primeiras pessoas do grupo da Pisa Trekking, como o Washington, um dos guias, o Carlos, e quando o ônibus chegou, a Monserrat (espanholíssima!), o Nelson, a Simone, o Zé Luís, os guias Beto, Fuchs e Gustavo (estagiário!), rever o Fernando do rafting no Paraibuna, o Fábio que dividiu barraca comigo, a Shelly da Webventure, o Chico e seu filho Lucas, de onze anos (o mascote da trilha), o Alexandre,  enfim... um monte de gente nova que seria difícil conhecer a todos em quatro dias. Mas foram quase todos... Deu prá conversar com todo mundo, mas não deu prá guardar o nome de todos...

 

Quinta, dia 07

Chegamos em Petrópolis manhãzinha de sábado, com um céu bonito e trinta candidatos a índio prontos para o que desse e viesse. No ponto de partida, no bairro de Correias, um cafezinho da manhã improvisado bem gostoso, servido no bagageiro do ônibus, um aquecimento, a distribuição da carga de barracas e comida que cada um levaria, um pedido de permissão para adentrar a serra aos deuses da montanha (eu pedi para O Deus desta e qualquer outra montanha...) e precisamente às oito e quinze da manhã partíamos para Teresópolis!

Meia hora depois de iniciada a caminhada, chegamos à entrada do Parque Nacional da Serra dos Órgãos, e contemplamos por um momento aquilo que seria nossa casa até domingo. E toca a subir! A mochila, com um pouco menos de quinze quilos, indicava que pesaria mais de uma tonelada até o fim da jornada.

Depois de um terreno relativamente (prá ser bonzinho...) plano, o caminho começou a ficar vertical, e sinuosamente subia pelas encostas, até a Pedra do Queijo, nossa parada para o primeiro almoço. Comemos com gosto os sanduíches, chocolates e torrones que tínhamos, gastamos o resto de água das caramanholas, enquanto o tempo começava a ameaçar mudanças...

Todo mundo já com frio lá no Queijo e toca subir pela Isabeloca até o platô Ajax, onde seria nosso primeiro acampamento. Mais uma hora e meia de subida e cerca de duas horas da tarde estávamos montando as barracas, e aproveitando prá se conhecer melhor, porque na trilha cansa muito mais andar e falar ao mesmo tempo...

No Ajax, um platôzinho mais ou menos abrigado, onde o sol bate uma boa parte do dia, passamos a tarde a papear e quando a fome começou a apertar, o Washington colocou um chapéu de mestre cuca e com os fogareiros de benzina começou a preparar a janta. Conforme a noite caía, a temperatura caía junto e cerca de sete horas da noite os dez graus positivos já eram vaga lembrança...

Um momento de abertura do céu nos permitiu ver as luzes da Petrópolis já distante. Após uma sopinha gostosa e muito macarrão, o corpo já pedia cama. Nem eram dez horas da noite e o silêncio era total no platô.

 

Sexta, dia 08

Seis horas da matina, com sol, e todo mundo em pé! Enquanto rearrumávamos a mochila, o café era preparado, as barracas desmontadas e oito horas já estávamos com o pé na trilha novamente.

Começava mais uma longa subida e de cara levamos bronca do Washington porque todos achavam que algum dos guias estava à frente da fila, mas não havia ninguém e estávamos pegando a trilha errada. Hierarquia recomposta, continuamos a subir... Na primeira corcova da montanha, conseguimos por alguns instantes visualizar a Baía de Guanabara, quilômetros e quilômetros distante. Olhávamos para baixo e as barracas que ainda estavam no Ajax pareciam pontinhos coloridos...

Um irônico “bem-vindos à Serra dos Órgãos”, dito pelo Washington, saudou a virada do tempo, que num instante baixou a visibilidade a trinta metros ou menos. No meio das nuvens, caminhávamos pelo Chapadão do Açú, esperando ter alguns momentos de céu bom quando chegássemos à Pedra do Açú, para vermos alguma coisa...

No Açú, alguns momentos sem nevoeiro permitiram algumas boas fotos e novamente contemplávamos o distante Rio de Janeiro. A Pedra do Açú, em formato de um bicho indefinido, meio peixe, meio outra coisa, permitia andar por entre suas rachaduras e um cabo de aço permitia chegar com segurança a um mirante, do lado de fora.

De lá fomos para o local do almoço, o Morro do Marco, onde um marco que dá nome ao morro está ali, feito de muitas pedras amontoadas. Marcos menores, chamados tótens, surgem a todo momento da travessia, indicando o caminho. A vegetação densa do início de trilha fora substituída pela de altitude, com capim cortante e muitas bromélias, com seus espinhos prontos a pegar trekkeiros distraídos...

O frio chegou com força e obrigou a todos colocarem seus agasalhos. O vento fazia a sensação térmica baixar mais ainda e um almoço feito de pão sírio com provolone, salame, presunto e maionese, regado com suco feito de gatorade em pó, foi imediatamente consumido por todos.

Já podíamos ver, quando as nuvens permitiam, o Dedo de Deus, o Garrafão, a Pedra do Sino, o Escalavrado e, muito ao longe, a Baía de Guanabara, o Pão de Açúcar e o Corcovado, com um Cristo minúsculo em cima. Pit stop feito, rumamos montanha abaixo para o segundo acampamento, no lugar chamado Paraíso.

Do mesmo modo que o Buraco do Inferno, em Fernando de Noronha, o nome Paraíso deve ter sido dado por alguém com um grande senso de humor negro. Um lugarzinho pequeno, onde as barracas amontoavam-se, numa baixada que na ocasião estava muito úmida, com alguns ratinhos correndo por entre as coisas... Toda minha noção pré-concebida de paraíso ia morro abaixo...

Barracas montadas, o Fuchs achou que era momento de indiarada, como ele mesmo gostava de pronunciar. Como entre nós havia, para desespero do Washington, alguns ex e outros não tão ex-escoteiros (uma vez... sempre!), uma parte do grupo foi até uns precipícios para tirar algumas fotos...

Trilha não havia e era necessário abrir caminho no peito por entre a vegetação cortante. Alguns, como eu, que foram de bermuda, pagávamos o preço de passar por aquele capim e ver a canela e a coxa serem lanhadas. Como o visual era muito bonito, não nos importávamos com isto naquele momento.

A chegada no precipício, que continha no fundo uma cachoeira da qual só escutávamos o barulho, foi saudada com muitos oohhhs! Deitávamos no chão e nos arrastávamos para ver o fundo daquelas pirambeiras. Numa delas, eu resolvi sentar na beirada e balançar os pés. Fui imediatamente ameaçado com gritos de todos, dizendo que aquilo era loucura e que eu podia cair... Eu sabia que não, mas saí dalí para não arranjar encrenca...

A volta ao acampamento foi um verdadeiro programa de índio: o mato nos cobria e lanhava agora também nossos braços. O Fuchs prometia gaduações de cinco cocares e mais dois arco-e-flechas para os aspirantes a índio. Quase seis horas da tarde chegamos ao acampamento.

Um frio doído, a falta do que fazer, algumas brincadeiras com garfo e colher, que metade do pessoal que brincava não sacou, uma sopinha quente e um arroz com linguiça e batata palha preenchiam a noite, que prá variar, terminou antes das onze. O dia seguinte ia ser brabo, e era aconselhável dormir bem.

 

Sábado, dia 09

Todo mundo acordou doído! Prá completar o tal do Paraíso, o chão era muito irregular e passamos a noite acordando no fundo da barraca, montada na descida. O céu fechado e com cara de poucos amigos nos alertava para o dia mais difícil da travessia.

Começamos a subir por entre muito barro e mato, o Morro da Luva. Uma subidon que não acabava mais, o frio molhado daquela altitude, junto com um vento forte, gelava o corpo. Quando parávamos, as mochilas eram usadas como barravento, enquanto esperávamos os demais do grupo.

Os abismos e descidas mais fortes começavam a aparecer uma após a outra, às vezes com mato, às vezes em pedra com um limbo preto que só de olhar já escorregava. Um pouco de chuva, como não poderia deixar de ser, nos pegou e toca colocar capa nas mochilas. O sol nem dera as caras e quem tinha um pouco de medo de altura (né Monserrat?) começava a ficar preocupado. Só que agora não tinha volta e lá vai todo mundo em frente... que atrás vem gente!

Chegamos ao Vale das Antas por volta do meio dia, para o almoço. Tal vale poderia muito bem ter o nome de Vale do Papel Higiênico ou Vale do Que o Papel Higiênico Limpa (em bom inglês, Shit Valley...), porque parece um banheiro a céu aberto, como todos os lugares em volta do local de almoço utilizados para fins não tão nobres, para necessidades um tanto básicas... Ainda bem que não cheirava mal...

Almoço feito e toca a subir morro, agora por um floresta de bambus. Muito barro e muita subida faz esquentar prá valer o corpo e a gente deixa de perceber o frio reinante. Só volta a perceber quando se chega à beira de mais um precipício, já na beira da Pedra do Sino.

Uma corda é passada por uma descida, as mochilas vão na frente, seguidas das mulheres, criança (só tinha o Lucas...) e os marmanjos por último. Quem ficava esperando era brindado com um vento muito forte e muito gelado que, encanado pelas montanhas, doía no rosto. Como as mochilas já estavam abaixo da passagem da corda, quem não tinha pego agasalho tremia de frio. Ficávamos a olhar aquele paredão do Sino, onde mochilinhas carregadas por pessoinhas subiam a encosta. Parecia um bando de formiguinhas indo para casa...

Subida brava esta! Íamos por uma pequena trilha, com duzentos metros de montanha acima de nós e cinquenta abaixo. O Ricardo mais parecia um caminhão pesado, com sua mochila que cada guia que pegava para passar bufava com o peso. Ele jurava para si mesmo que era a última subida dele, ou que a Andréia teria que levar um pouco mais da bagagem!

O abrigo quatro, local de nosso último acampamento, foi alcançado já de tardezinha. Montamos rapidinho as barracas e corremos à Pedra do Sino para ver se conseguíamos o tão falado pôr-do-sol daqui. Nossa decepção foi que ao invés de pôr-do-sol, pegamos uma friaca monstro e de tanta nuvem que nos cercava, nem o pico ao lado podia ser visto. Fazer o quê? Voltamos ao acampamento já de noite e torcíamos por um dia melhor no domingo...

Jantamos capeletti, precedido da famosa sopinha e o resto da noite foi preenchido com rodada de piadas, músicas antigas e uns poucos ficaram um tempinho a mais: eu, a Monserrat, o Nelson, o Fuchs, o Fernando e o Estag (Gustavo), que vinha de lavar as panelas. O Nelson ficava envolto no cobertor de emergência e parecia o National Kid, ou algum outro super herói japonês. Um chazinho prá fechar a noite e toca dormir...

 

Domingo, dia 10

Muitos já se perguntavam porque trocar o aconchego do lar, a comida pronta e o banho quente, a cama macia e todo o conforto da cidade para passar frio, ficar sujo, dormir mal no ambiente inóspito da montanha. Aquela alvorada às cinco da matina estava para nos responder com muita categoria esta pergunta...

O horizonte já avermelhado, todo mundo com câmera e agasalho a postos, rumamos para a Pedra do Sino. As passagens de nuvens ameaçavam abortar o show, mas mesmo assim, tínhamos que arriscar... Chegamos no nevoeiro e por alguns momentos, achamos que a oportunidade tinha sido perdida. Para nosso delírio, estavamos errados!

Quando limpava, víamos a cascata de nuvens despencar pelas bordas da montanha e um nascer do sol esplêndido, extremamente vivo, com todos os tons do vermelho ao amarelo. Como que hipnotizados pelo momento, ficávamos a observar o sol responder nossas perguntas sobre o porquê de estarmos ali.

Comentava com a Monserrat que aquilo que víamos ali, nenhuma foto ou vídeo podia traduzir, muito menos narração. Era algo exclusivo da gente, um prêmio pelos dias na montanha. Recompensados, sentindo-nos mais vivos que nunca, voltamos ao acampamento para tomar o café da manhã.

Barracas desmontadas, mochilas nas costas, despedimo-nos do Abrigo 4 e começamos a trilhar o último trecho da travessia, uma longa descida até Teresópolis.

Descida tranquila, cada vez mais quente, cada vez com mais água e mais sol. Cachoeiras apareciam aqui e ali, e alguns de nós atreviam-se a tomar um banho naquelas águas congelantes...

O fim da trilha dava-se numa barragem, já com banheiro e grama plantada, alguns carros, anunciando a civilização de volta. Mais quatro quilômetros e chegávamos à entrada do parque.

Pegamos o ônibus e fomos a uma pousada para tomar “aquele” banho, após o qual todos, sem exceção, ficavam pelo menos dois quilos mais leves. Um rodízio de carnes, numa churrascaria, prá comemorar o sucesso da travessia e toca pegar o ônibus para Sampa! Na saída de Teresópolis, víamos bem alto as montanhas que estivéramos andando por estes dias.

Oito horas depois, com pequenos incidentes como guerra de travesseiros, flagras com fotos e muitas piadas chegávamos em São Paulo e cansados mas felizes, despedimo-nos e juramos reencontros em datas futuras. Tomara!