São João Batista do Glória/MG – mundo véio sem portêra...

29 a 31 de março de 2002

Já perdera a conta de quantas vezes o Eduardo e a Rita tinham me convidado para conhecer São João Batista. Desde a primeira vez que foram para lá, era um tal de “vamos, que você não vai se arrepender”. Eu sabia disto, mas as oportunidades batiam sempre com compromissos. Desta vez foi diferente, e esta páscoa seria no paraíso...

 

Sexta, dia 29

Saímos cedinho de Sorocaba, por volta da cinco da manhã. Eu, Monserrat, Eduardo, Rita, o Jackson, Fabrizia, Camila e Luis. O destino? Uma cidadezinha a pouco mais de quatrocentos quilômetros de distância, chamada São João Batista do Glória, em Minas Gerais.

Encravada bem pertinho da Serra da Canastra e da Represa de Furnas, esta cidade é conhecida pelo grande número de cachoeiras que abriga, muitas ainda escondidas por alí, esperando serem descobertas.

Rumamos para Campinas e ao chegar na entrada da cidade, um problema: a Camila foi para um lado, o Eduardo para o outro e a gente, que seguia por último, fomos com a Camila sem perceber que tínhamos nos desgarrado. Só percebemos bem à frente e daí decidimos seguir caminho e tentarmos nos encontrar em algum posto do caminho.

Passamos Campinas, Mogi-Mirim, Mogi-Guaçu, Casa Branca, Mococa e nada dos dois. Esperamos num posto que a Rita falou que pararia, e nada. O celular da Mon tocou e era minha mãe dizendo que os dois tinham ligado em casa, disseram que tinham se perdido e que estavam vindo. Pelo menos, notícias, mas não entendemos direito esta história de se perder, logo eles que sempre vêm prá cá...

Ao chegarmos na balsa que atravessa o rio de Passos para São João, na fila encontramos os dois, que não estavam por assim dizer, muito amistosos... Estavam bravos e com razão, por virmos separados, mas como tínhamos chegado bem, deixaram prá lá...

Cruzamos o rio e à nossa frente muita terra. Quilômetros de estradinhas poeirentas e esburacadas nos apresentavam à terra fascinante que havia ali. Conforme percorríamos a estrada, a paisagem que se descortinava lembrava um início de chapada, num convite à aventura.

Um riozinho. Outro. E Matilda (meu strada adventure...) levava seu batismo de natureza, e com gosto espirrava água para os lados! Um rio um pouco mais difícil e o gol vermelho da Camila foi logo pedindo água, quer dizer, pedindo menos água... Encalhou e toca puxar o bicho prá fora e passar o riozinho. Risadas de todas, amarela da Camila, e chegamos ao Facãozinho, local de acampamento.

Era literalmente um fim de mundo este lugar, e após uma vistoria, os quatro do gol vermelho resolveram acampar em outro lugar, e não se arriscar a ficar encalhado num rio ou num buraco à noite. Nós, que estávamos de picape, por nada deste mundo deixaríamos de acampar alí...

Vimos as cachoeiras dali e o local de acampamento. Voltamos aos carros e rumamos para o sítio do Ênio, um mineiro da gema que possuía a única pousada das redondezas. Era lá que o resto de nós iria acampar. Bem arrumadinho, cheio de cavalo, vaca, galinha e aquele ar de Minas, acertamos a noite dos quatro e fomos ao Vale do Céu.

Esta tal vale é uma fazenda que tem inúmeras cachoeiras, cada uma mais bonita que a outra. Uma sequência delas faz inveja a qualquer um que só veja as fotos. A água parece que espirra de dentro da pedra e cai num lago e segue dali para uma cachoeira de seus quarenta metros, comprimida num canyon numa força imensa. Arco-íris formados pelas águas são fato comum e apesar de estar meio cheio de gente, continuava lindo. Como o próprio nome diz, no céu deve ter um vale assim, só espero que com menos gente.

Descemos por uma trilhazinha e chegamos na parte de baixo da grande cachoeira. Havia lá um laguinho onde nos divertimos nadando na água geladíssima e o Jackson e o Luis ficavam a imaginar como colocar uma corda ali para fazer um rappel. Acabaram desistindo, os malucos...

fim de tarde, deixamos as tralhas dos quatro no Ênio e rumamos para o Facãozinho. Mais batismos para as Matildas e depois de atravessar um pasto, montamos acampamento dentro da fazenda. Ao lado de uma cachoeira!!!

Neste cenário fantástico, a noite foi chegando de mansinho e logo escureceu tudo. Preparamos o jantar (depois do Du e da Rita, porque meu fogareiro negou fogo!! pisou na bola, o mardito...), acendemos a fogueira e ficamos esperando a lua cheia nascer. Nesta espera, nada melhor que um violãozinho prá acompanhar o som das águas, e pela noite adentro tocamos de Marisa Monte a Renato Teixeira, sem pressa de terminar a música, no clima totalmente mineiro que reinava ali.

Quando eram dez da noite, a lua já tinha surgido e fazia sombra. Fomos andar ao luar e ver a cachoeira maior que parecia mais mágica do que nunca, naquela luz fantasmagórica. Dava vontade de ficar ali até a lua se pôr, mas estávamos tão cansados do longo dia que à primeira sugestão de cama corremos para as barracas e fomos dormir... Sono dos justos aquele...

 

Sábado, dia 30

Nem sete da manhã e já preparando as coisas prá incursão do dia. Café da manhã tão rápido quanto possível e estávamos preparados para conhecer este mundo véio sem porteiras que é esta região de Minas.

Porteira até tem, mas deixam você passar, e há estradas que cruzam as fazendas, onde de longe se viam motoqueiros e jipes a passear por ali. O terreno é cheio de pedra mineira, aquela de borda de piscina, e a sensação era de que a gente estava à beira de uma... Se não fosse o calor que castigava...

Saímos do facãozinho a pé e rumamos para um planalto a alguns quilômetros de distância. Num dos paredões, a gente podia ver uma caverna que parecia pequenina, mas era bem grande, com uma boca de seus dez metros. Mas, sem cordas, era impossível chegar lá. Decidimos por outra abordagem: encontrar lugares ermos...

A idéia era a seguinte: caminhar sobre o planalto, seguindo cursos d’água, e conhecer lugares que a imensa maioria das pessoas nunca viu, nem mesmo os habitantes de lá. Não precisava nem ser bonito, só pitoresco.

Nossos olhos brilharam ao ver uma cachoeira que caía por um canyon num curso de cerca de cento e cinquenta metros. Uma visão fantástica e para nós era a desculpa para tentarmos chegar por cima no início do canyon. O sol não queria nem saber... Queimava a moleira com gosto e onde não se passou protetor solar, ardeu.

Água não era tão difícil de encontrar, só tinha que tomar o cuidado de colocar algumas gotas de Hidrosteryl e esperar cerca de meia hora, pois havia marcas de gado por perto, e uma intoxicação não estava descartada...

Depois de passarmos por alguns motoqueiros (na verdade, eles que passaram por nós...) chegamos ao topo do planalto e o visual era fantástico! Escolhemos um riachinho que corria de um lago e seguimos por um tempo, para ver se chegava ao tal canyon.

O problema é que o caminho estava ficando bem difícil e nossos ânimos, cozidos pelo sol, começaram a diminuir. Resolvemos abortar a procura e chegar ao canyon pelo outro lado, seguindo o riacho láááá embaixo...

Volta sem problemas, com exceção do sol, e lá embaixo já víamos o riachinho. Descemos e descemos e chegamos no riacho onde, de pedra em pedra e uma pouco de tênis molhado na água, chegamos à base do canyon. Lá, uma maravilhosa cachoeira, com um laguinho convidativo, nos informava que se tratava de um lugar especial. Nenhum sinal de turista, nenhuma farofa, só nós a apreciar a paisagem. A água doía de tão gelada, mas tínhamos chegado alí, e isto era o que importava...

Procuramos uma pedra onde pudéssemos preparar o almoço e a encontramos. Uma espécie de mesa, onde cabia facilmente quatro pessoas. O Edu e a Rita preparavam comida quente e eu e a Mon ficamos na salada de atum com pão sírio. Uma moleza gostosa veio depois da barriga cheia e a gente ficou alí, de papo pro ar, sem maiores preocupações do que os espinhos que tinham entrado no dedo da Rita e o Edu ficava se deliciando para tirá-los. No final das contas, não tirou nem metade, mas fez um estrago na mão dela... A gente brincava que ele estava fazendo “malcriação” na mão da Rita, que por sua vez, não estava achando tanta graça nas nossas risadas...

Mochilas nas costas e hora de voltar ao acampamento. Resolvemos seguir pelo curso do rio, que iria até lá e muitos outros lugares secretos foram aparecendo...

Primeiro um reflorestamento incentivado por Furnas, com espécies nativas, depois uma série de cachoeirinhas, mescladas de lagos, onde o convite para um mergulho tendia ao irresistível. A seguir, um local mais fundo e a sequência de cachoeiras maiores. No total, três delas. A gente seguia pelo canto, só apreciando o visual... A primeira pedia um rappel, a segunda, um banho no laguinho, e a última, a mesma do luar da noite anterior, implorava por sentar-se na beirada e só deixar os pés molhar.

Material de banho na mão e toca criar coragem prá entrar na água gelada. Banho bem rápido, mesmo porque o sol já se fora por aquelas bandas e gelava até o pensamento banhar-se ali...

Pegamos as Matildas então e voltamos ao camping do Ênio, para ver o resto do pessoal. Pausa para fotos atravessando o riacho e ao chegarmos lá, os quatro ainda não tinham voltado. Ao longe, bem longe, a gente os viu, e o Edu pegou a Matilda dele e foi buscar o pessoal, que estava acabado, mas feliz!

Foram até uma cachoeira chamada do Quilombo, uma grande queda que numa próxima vez iremos visitar (vai ter próxima? obviamente...). O Luís não parava de falar com assombro do tanto de lugar bonito que tinha por ali. Na verdade, quem já conhece Brotas vai ter uma noção do que falo.. Isto aqui deixa Brotas no chinelo facinho, facinho...

Fim de tarde e depois do sol se pôr ficamos a esperar o jantar. O Ênio se aproximou e, com seu jeito de matuto, serviu uma pinguinha. Ele estava feliz da vida porque a quaresma tinha acabado e ele já podia pôr alcool na boca... O jantar foi no estilo mineiro: abundante e condimentado. Os doces de abóbora e de leite foram devorados com gosto!

Despedimo-nos do pessoal e voltamos ao nosso campo. Noite adentro e desta vez, ninguém tinha ânimo prá uma moda de viola... Eu estava tão cansado que botei o violãozinho prá escanteio! Toca prás barracas, recuperar o dia maravilhoso que tivéramos.

 

Domingo, dia 31

Acordamos, sem exceção, no meio da madrugada, com a mesma sensação: sede! Uma sede gigante, que as caramanholas não conseguiam matar. Toca pegar mais água e beber... Acho que foi o doce, mas não tenho certeza... Mais um mistério destes rincões de Minas!

Manhãzinha e mais uma vez alvorada estilo The Flash! Prá completar, tínhamos todo o acampamento prá desmontar e a idéia era de nos encontrarmos às oito no Ênio para seguirmos ao Paraíso Perdido. Tudo arrumado, colocado nas Matildas e lá vamos nós, despedindo, pelo menos por um tempo, destes campos tão belos. Tão belos que o Du e a Rita estão loucos prá conseguir dinheiro e comprar este lugar...

Saímos do Ênio e fomos para o tal Paraíso Perdido, que de perdido não tem mais nada... Quilômetros e quilômetros de estradas de terra, um carro com o carter estourado por um mata-burro, como testemunho que não se deve abusar por ali, poeira que não acabava mais (ligar o ventilador do carro era suicídio...) e quase dez da manhã chegávamos, os três carros, ao tal paraíso.

Na entrada, no pagamento do ingresso, recebe-se uma pulseira indicando autorização para perambular por ali. Um camping cheio de gente, fazia-nos sentir saudade do dia anterior, mas o lugar continua merecendo o primeiro nome. É lindo de morrer aquele lugar...

Um rio vem rasgando a pedra há milhares de anos e o que se vê é uma sucessão de cachoeiras e lagos rasos e profundos, num cenário digno de filme. Conforme a gente vai subindo o rio, o número de pessoas diminui e fica melhor para aproveitar. Cachoeiras prá deitar-se embaixo e lagos para nadar..

Uma curiosidade local é o cabeço d’água. Não se trata de nenhum ser mitológico, mas um fenômeno que ocorre quando chove muito na cabeceira do rio e o nível da água sobe de repente vários metros. Fotos e placas nos avisam que não é brincadeira nem folclore, ou seja, se chove, nem pense em ficar exposto por ali...

Meio dia e resolvemos ir até à represa de Furnas, para almoçar, num restaurante que servia traíra sem espinho. Quem conhece o peixe, sabe que isto é impossível, e a curiosidade é tanta que você pede o prato só prá ver se é verdade. Aproveitamos e pedimos filé de tilápia com creme de milho.

Enquanto isto, o Barrichelo abandonava mais um Grande Prêmio de Formula I... Nossa idéia era de realizarmos um passeio de lancha na represa, visitando alguns canyons, mas depois do farto almoço, resolvemos que era hora de voltar prá casa.

Despedimo-nos do Jackson, da Fabrizia, do Luis e da Camila e rumamos prá Sorô, onde chegamos por volta das dez da noite.

Nem nos despedimos de São João Batista da Glória. A certeza de que o retorno será em breve é imensa... Um lugar daquele, só indo prá explicar a imensidão de um mundo véio sem porteira.. e glorioso.