Ilha do Cardoso/SP – Fator Fracasso e o batismo de Juju e Bibi

18 a 21 de abril de 2003

Estou prá escrever algo sobre o que eu chamo de Fator-Fracasso há um bom tempo, e esta viagem à Ilha do Cardoso veio bem a calhar... A idéia inicial? Passar o feriado prolongado de Páscoa (mais Tiradentes), numa ilha legal, curtindo a praia, a natureza e sol. Só faltou combinar com o sol...

 

Sexta, dia 18

Eu não cheguei nem a dormir. Duas da matina e o Eliel, a Patrícia e as gêmeas Juliana e Gabriela aparecem em frente de casa, prontos para irmos passar a páscoa na Ilha do Cardoso, no litoral sul de São Paulo.

Uma noite bonita e estrelada, a lua cheia impressionante, indicava que este seria uma viagem memorável, com direito a caminhadas noturnas e luais na praia, muito sol e muita diversão. Só que, conforme a gente foi chegando perto de Cananéia, o céu já começou a nublar e muita neblina no caminho indicava que o tempo estava mudando, e prá nosso medo, prá pior.

Chegamos por volta de seis da manhã em Cananéia, descarregamos os carros e rapidinho pegamos um lugar na segunda escuna que partia. Seria uma viagem de duas horas e meia a três horas, até a comunidade de Marujá, uma vilinha de pescadores no início da restinga da Ilha do Cardoso. Era longe prá caramba, mas a gente estava passeando mesmo... quem se importa com o tempo?

Um vento frio e forte nos acompanhava o tempo inteiro, fazendo todo mundo estar com agasalho. Volta e meia, alguns botos davam o ar da graça, surgindo à superficie a uns vinte metros da escuna...

A escuna que não colaborava! Lenta, cheia de fumaça fedida e barulhenta! Ela tinha sido contratada na véspera, porque uma das escunas "titulares" tinha quebrado e tinha muita gente querendo chegar na ilha. O barqueiro, que devia estar com mais sono que qualquer um, ia em primeira marcha, em meia marcha, quase que a velocidade de remo, e toda a gente começando a ficar impaciente...

As outras escunas, que tinham zarpado depois da nossa, passavam alegremente por nós, e Marujá custaaaava a chegar. Depois de quase quatro horas, as primeiras casinhas apareceram no meio do manguezal e meia hora depois a gente chegava no trapiche. Desembarcar? Não! O danado do barqueiro resolveu deixar primeiro o pessoal que ia ficar um pouco mais à frente. Detalhe: não tinha pier ali, e a gente ficou esperando por uma hora até todo o pessoal e toda a bagagem ser transportado até a terra em botes. O bom humor pedindo licença para sair e o barqueiro ainda não sabia onde era o nosso camping, o Camping do João Rosa.

Quando chegamos de volta ao pier, pulei logo para terra e corri perguntar se o nosso camping era ali mesmo. Era! Cinco horas depois do embarque em Cananéia, cá estavamos em Marujá, desembarcando um exagero de coisas e carregando tudo por cerca de cem metros e toca montar barraca!

Seu João Rosa é um senhor com uma barbona branca, com jeitão de pescador antigo, nos indicou o lugar onde a gente poderia armar as barracas e apesar de todo mundo estar embalado, já que o tempo abrira, estava todo mundo, sem exceção, com sono e depois de comermos umas esfihas que a Patrícia tinha preparado, capotamos nas barracas e só fomos acordar quase três da tarde. Sonequinha básica de duas horas...

Bem, quem acordou foi eu, a Mon e a Patrícia. As gêmeas e o Eliel dormindo felizes.... Resolvemos explorar o lugar e fomos passear na praia. Como é começo da restinga da ilha, numa distância de trezentos metros, você vai do Mar Pequeno, quase um rio, até o Oceano Atlântico, com toda aquela água. Estávamos na praia, e o Atlântico avisava que não estava de brincadeira! Um vento fortíssimo atrapalhava o andar quando íamos para o norte e nos empurrava quando íamos para o sul. Estava engraçado, mas a gente sabia que era sinal de mudança forte do tempo...

Voltamos e eu e a Mon fomos ver o sol se pôr, do lado do continente. Mal sabíamos que era nosso primeiro e único pôr-do-sol na ilha... Os outros quatro chegaram logo depois do sol sumir. Ficamos num barzinho perto do pier até a noite cair, beliscando uma porção de mariscos. Até que estava gostoso. Ficamos um bom tempo lá, até a noite cair de vez. Aí bateu fome e fomos fazer o jantar...

Jantar de esfiha e o resto das coisas que estragariam logo por estarmos sem geladeira. E como tinha coisa prá comer!!

Como eu tinha levado violão (e a pasta de música, que sem ela, eu sou maneta, hehe...) ficamos cantarolando até ninguém mais aguentar de sono. Foi um, foi outro e nem dez horas da noite estava todo mundo dormindo, cansados do longo dia que tivemos.

 

Sábado, dia 19

Durante a madrugada, um pingo, outro, mais um, e não parou mais! Choveu forte, choveu fraco, choveu com vento, choveu parado. Chegou a manhã e ainda chovia, o dia estava bem claro e ainda chovia. Como a gente tinha um radinho (talkabout) em cada barraca, chamamos o Eliel e ele falou que o café estava quase pronto. Detalhe: estávamos a cinco metros de distância....

Tomamos o café da manhã e... fazer o quê? Voltamos para as barracas, torcendo que o tempo melhorasse. A Mon ficou revisando a dissertação de mestrado (sim! ela levou o capítulo 4!!!) e eu dormi como fazia tempo que não dormia.

A Patrícia resolveu fazer o almoço, mas o detalhe é que ela não queria ler as instruções (aqueles macarrões Maggi ou Knorr, um deles...) e fio logo fazendo do jeito errado... Piadas prá cá e prá lá e logo, logo, estávamos saboreando um macarrãozinho bem gostoso, sobremesa de passoca-rolha, e uma mistureba de suco...

Por volta das duas da tarde, o tempo deu uma firmada, e todo mundo já se agitou prá fazer alguma coisa, porque viajar tanto prá ficar dentro da barraca é o cúmulo. Fomos os seis passear na praia, que não tinha vento.

Pelo jeito, foi uma idéia geral na ilha. Todo mundo andando na praia!!! Mesmo assim, a praia era bem deserta, se comparada com as da baixada santista ou do litoral norte. Andamos quase duas horas de ida e o mesmo tanto de volta. O Eliel surrupiando o chinelo da Juju e da Bibi e arremessando longe, a Patrícia fazendo bagunça, a Monserrat segurando com força seu chinelo prá ninguém jogar longe e eu ajudando o Eliel a encontrar novas modalidades de arremesso de chinelo. Mesmo sem sol, estava divertido nosso passeio.

Na volta, fomos procurando algo como caixotes que pudéssemos usar de banco e mesa para o fogão e quando chegamos, pareciamos estes catadores da cidade. O Eliel ainda arranjou ânimo para ir com as gêmeas nadar um pouco, mas voltou rapidinho, impressionado com a força da correnteza no mar. Antes de ser arrastado, desistiu de arriscar...

Foi só chegar e começar a chover de novo... O bom humor derreteu e a gente resolveu não fazer janta. Fomos procurar um lugar prá comer. No primeiro (de três lugares que existiam) tinha acabado de fechar, e eram sete da noite! No segundo, só serviam lanche e porções. No terceiro, tinha o tal do PF, prato feito, que é feito pelo dono do lugar. O problema é que você só podia escolher algumas coisas, o peixinho era muito do sem-vergonha e esta miséria toda custava R$ 6,00 !!! Comemos sem apreciar muito, e prestando mais atenção na música que rolava no barzinho ao lado, o único de todo o local, por sinal.

Música vai, música vem, e já eram dez horas, todo mundo com sono, principalmente as gêmeas que estavam caindo pelas beiradas. Bom... vamos dormir que amanhã tem caminhada grande, se aquele danado do São Pedro deixar! Tomamos um chazinho e cama!

 

Domingo, dia 20

O dia amanheceu claro, com uma grande faixa de céu azul aparecendo ao sul. Tudo indicava que o tempo iria melhorar e a caminhada seria de óculos escuro... Acordamos às sete da matina, tomamos um café (mais ou menos) rápido e corremos ao Centro de Visitantes, de onde sairia o passeio.

A faixa azul já tinha sumido e a ameaça de chuva era grande... Estávamos com as câmeras protegidas e decididos a encarar a brincadeira: no total eram vinte e quatro quilômetros, entre praia, floresta, montanha e barro, até um lugar chamado Piscinas da Lage, no meio da ilha do Cardoso. Com tempo bom seria difícil. Com tempo ruim, tornava-se um batismo para a Juliana e a Gabriela, na sua primeira incursão à aventura. As duas, com seus onze anos, estavam com uma carinha de será-que-vai-chover engraçada, não tendo idéia do que o dia poderia reservar.

Prá começar, uma caminhada de cinco quilômetros na praia, até o primeiro costão. Depois, tinha a opção entre ir pelas pedras ou ir pela montanha. Como o mar estava batido, fomos pela montanha e logo no sopé, a chuva chegou. Uma chuvinha fina, daquelas que avisam que vieram prá ficar. Daquelas que vão minando seu humor e quando você percebe, está praguejando a cada pingo...

Mas no começo, ainda é diversão! A floresta estava meio alagada, e a gente afundava o pé no barro e era um tal de água por cima e água por baixo. Na subida, barro. Na descida, baro. Na baixada, barro. Seria engraçado se não fosse a gente que estivesse sofrendo aquilo...

Meia hora depois, chegamos a uma nova praia, esta maior ainda. E a gente andou! Andou, andou, andou, até que, mais de uma hora depois, no fim da praia da Lage, entramos novamente na floresta. Parecia que tudo, das mochilas aos ossos, estava molhado. Parecia que a gente não conseguia mais se aquecer direito. Mas continuamos, porque dentro da floresta, a vegetação protege um pouco da chuva direta.

Quatro horas depois de sairmos do Marujá, chegamos às tais piscinas. São três no total, mas a chuvinha fina querendo fazer vítimas e o frio cortante que imperava deixou só o Eliel, louco por uma água, entrar. Ele colocou seu óculos de natação e (ele vai me matar...) protegido pela capa de gordura, se arremessou na piscina natural, formada pelo rio Cambriú. A gente ficou comendo, tentando repor alguma energia e se aquecer um pouco.

O guia Oscar estava desconsolado. "Este lugar é tão bonito com sol... Com chuva chega até a ser perigoso!". E estava perigoso mesmo... Não ficamos nem uma hora ali e já corremos de volta à floresta, que pelo menos nos abrigava um pouco mais, já que lugar seco não havia mesmo.

E atravessa floresta, e volta à praia, aquela grande... Andamos muito, e as sapatilhas de neoprene, como são baixinhas, começaram a judiar do joelho. No costão rochoso, foi impossível passar. O mar estava ainda mais bravo e todo mundo não arriscou e foi pela floresta mesmo.

O detalhe é que a floresta estava uma lama só, de tanta gente que tinha andado por ali. E a sucessão de tombos serviu para alegrar o pessoal, quase dando prá fazer uma competição, tamanho o nível artístico dos capotes!

Última praia, chuvinha dando uma trégua, todo mundo louco por um banho quente que não haveria. Chegamos e o banho gelado de todos os dia dai-nos hoje também, mas pelo menos vestimos roupas secas para encarar a noite que já tinha chegado.

À noite, uma super janta, com direito a vinho, arroz, polenta, macarrão, passoca e o que mais estivesse à mão. Comidos com vontade de quem passou por poucas e boas naquele dia. Comemos tanto que o sono veio rapidinho. Sono dos justíssimos, por sinal!

 

Segunda, dia 21

Último dia e, sabendo que a escuna zarpava às nove, acordamos às sete e toca desmontar acampamento. Café da manhã ao mesmo tempo do desmonte. Barracas guardadas molhadas mesmo e tudo meio socado prá não perder a hora e nem a esportiva por ver tanta areia grudada em tudo.

Nove horas e estávamos com toda a tralha no pier, vendo como fazer prá não voltar na mesma escuna que nos trouxera. Sorte nossa, a mardita estava lotada e acabamos ficando na maior, que zarparia depois mas era muito, muito melhor! Mico do dia, confundi a bandeira de Cananéia com a do Vasco da Gama (as duas são com a Cruz de Malta) e o responsável pelo embarque só me deixou entrar porque eu era são-paulino (segunda vez que meu tricolor clube bem amado me salva, mas esta e outra história...).

Ainda chuviscava e guardamos todas as coisas, escolhemos um lugar seco e ficamos a contemplar a paisagem, que insistia em ficar bonita, mesmo com o tempo fechado.

Uma hora depois de zarpar, não é que a gente ultrapassa a escuninha-tartaruga? Ficamos a troçar com os passageiros de lá, e o pessoal, de bom humor, fingia remar, para tentar ir mais rápido...

Chegamos em Cananéia meio dia, e saímos a procurar um lugar prá comer. Ali perto do cais estava impossível e resolvemos tentar a sorte na avenida de saída da cidade. Finalmente, demos sorte e comemos num restaurante simples, mas com uma comida deliciosa! Uma moqueca de peixe e um bifaço à parmeggiana. Antes, ostras gratinadas, com queijo. Divino, simplesmente divino. Comemos até não aguentar mais e voltamos aos carros para encarar a BR116 e a estradinha Tapiraí-Juquiá (no caso, Juquiá-Tapiraí...)

Chegamos seis da tarde deste nossa aventura de páscoa, com a Bibi e a Juju (e por que não dizer o Eliel e a Patrícia) devidamente batizados. Podia ter sido melhor, e esta é a deixa para explicar o título: Fator-Fracasso.

Não quero dizer que o Fator-Fracasso é ruim. Muito pelo contrário, toda aventura tem sua chance de dar errada. Este é o tal fator... Sabendo que algo pode dar errado, você faz de tudo para que se der, você tenha uma carta na manga. Assim, pudemos encarar a trilha numa boa, mesmo sabendo que com sol seria melhor.

A vivência em atividades na natureza nos ensina que quem manda é sempre ela. Cabe a você pedir permissão e aproveitar o que lhe é proporcionado, da melhor maneira possível. Se chover, que bom, se fizer sol, melhor, mas sempre é uma diversão a coisa toda.

Conversando depois com o Eliel, ele me falou que adorou a viagem e que fazia tempo que ele queria um tempo com qualidade, com a Patrícia e as gêmeas. Por qualidade, entenda longe de televisão, poluição, violência. Com ou sem chuva. E isto, com certeza, ele conseguiu nesta aventura molhada...