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- Cananéia/SP – o mero detalhe...
16 e 17 de fevereiro de 2002

O sol ainda não subiu muito, deixando a temperatura agradável... Uma leve brisa sopra de oeste, e nada além do swell, a ondulação normal dos mares, move o barquinho, ancorado a cinquenta metros da ilha.
Um toquinho leve na linha. Nada que pareça muito grande... Outro toque. Súbito, a vara começa a vergar e o molinete acusa: é um paru! E dos grandes!
Solta a fricção. Deixa o bicho correr e cansar. Deve ter seus cinco, seis quilos... O peixe submerso, que correra para longe do barco, agora faz meia volta e tenta levar a linha para se emaranhar na corda da âncora ou melhor (para o peixe), estourar na hélice do barco.
Cinco minutos já se passaram e o braço começa a doer. Sem tréguas, o paru corre de um lado para o outro e o menor descuido pode romper a linha de meio milímetro de espessura. Dez minutos depois, o peixe começa a cansar.
Após quinze minutos de ótima briga, o paru emerge, rendido. Colhido com o puçá, é colocado no gelo para logo que chegar em terra ser preparado. Frito, em filés deliciosos, com o gosto que só peixe pescado na hora tem.
Esta poderia ser a história deste diário de bordo, mas o que estava reservado para nós ia além do pegar o peixe. Neste final de semana, tivemos uma aula do que é, na essência, pescar.
Sábado, dia 16
Uma da manhã e os nove candidatos a mentirosos se apertavam na van do Antônio Carlos, com destino a Cananéia, no litoral sul de São Paulo. Éramos eu e meu pai Mário, meus tios Helinho e Ênio, o Paulo, o Laurenci e o Gerson e os irmãos Ednei e Daili. Mais a bagagem e uma caixa de isopor grande para trazer bastante peixe. A torcida era de que a barra de Cananéia estivesse permitindo a passagem para chegarmos à Ilha do Bom Abrigo.
O céu limpo e cheio de estrelas nos dava alento de que isto seria possível e que conseguiríamos pescar longe do Mar Pequeno e de seus bagrinhos e baiacus. A idéia era de pescarmos os tão desejado parus e estávamos confiantes nisto.
Cinco da manhã e chegávamos na cidade, em frente ao Hotel Beira Mar, dono do barco que utilizaríamos. Esperávamos o café da manhã e enquanto isto, fomos colocando as coisas no barco. Seis da manhã, café tomado, dramin tomado e então zarpamos.
O céu que estava estrelado há uma hora atrás, agora exibia uma névoa e nuvens que pressagiavam mudança de tempo, mas a gente achava que não seria hoje. O Abenel, experiente caiçara que conversara conosco no porto nos advertira que o tempo não estava com cara muito boa e que a pesca não estava lá estas coisas, mas decidimos arriscar mesmo assim... Afinal de contas, estávamos prontos para o que desse e viesse! Ou quase...
A barra de Cananéia decididamente não era a mesma! Nem uma onda! Parecia que estávamos ainda no Mar Pequeno... Nada mal... Chegaríamos mais rápido e sem sobressaltos...
E foi desse jeito mesmo. Rapidinho, estávamos em frente à ilha. Linhas na água, esperanças a mil e todos no aguardo das chegadas dos grandes peixes... Ficamos neste aguardo por mais de uma hora e nada de peixe, só uns pequeninos que mal cabiam no anzol...
Mudamos de lugar e tentamos no Filhote, que fica ao lado do Bom Abrigo. Mais uma hora e meia lá e nada, nada mesmo!!! Resolvi dormir, que eu já estava caindo pelas beiradas de tanto sono! O barco balançava e eu balançava junto.... Uma horinha de sono e acordei com o barco partindo para um parcel, procurando onde estariam os danados dos peixes... No meio do caminho, o Paulo acabou fisgando um espada, com isca artificial, que serviu para melhorar um pouco nossos ânimos!
O grande problema foi que liberaram as redes perto da ilha. Não sei se foi a fiscalização que diminuiu, mas o fato que este ano ainda não havia começado a temporada dos parus... A fauna local está bastante prejudicada e para nós, pescadores de ocasião, resta apreciar o resto da paisagem, que é belíssima... É muito barco com rede e volta e meia se vê peixinhos mortos boiando, provavelmente lançados fora pelos pescadores. Triste mesmo...
Mas não desistimos. Ao mero ajuntamento de gaivotas, achávamos que ali tinha peixe. E dos grandes! Pura ilusão... O tempo, que estava ótimo, foi fechando, fechando e no horizonte já se via a chuva se formando. O paredão branco vinha devagar, mas ia nos pegar com certeza.
Agora, com chuva, torcíamos para que não ventasse, porque chuva não faz mal nenhum, mas vento levanta onda, e teríamos que passar pela barra ainda para voltar ao continente... Nada beliscando, nem peixinho e muito menos peixão, voltamos à ilha do Bom Abrigo. O Ênio tirava seu sono atrasado em doses não recomendadas à maioria dos mortais. Raras vezes se via com a vara, mas estava curtindo de montão a oportunidade. Quando pegava um peixinho, por menor que fosse, fazia um escarcéu e provocava quem não tinha pego ainda. No caso, seu irmão Hélio...
Como a pesca não estava lá estas coisas, decidimos aportar na ilha e dar uma passeada por lá. O Ednei pulou na água e convenceu um pescador a nos emprestar o bote e lá fomos eu, o Nei, o Daili, o Paulo, o Laurenci e o Gerson para a praia. Os outros três ficaram no barco. Como estava ameaçando chuva, apressamos a ida para o farol, antes que a dita nos pegasse. O Paulo e o Gerson ficaram na praia, conversando com um oficial da Marinha, que falava pelos cotovelos. Deixei com eles um talkabout e levei o outro, no caso de algum imprevisto.
Quando atingimos a crista entre os dois picos da ilha, vimos a parede de chuva bem próxima, cerca de duzentos metros de nós. Alguns pingos começaram a cair e após o primeiro tapa do vento, o dilúvio caiu! Chegamos aos trancos e barrancos no farol e entramos por uma dobra do portão, que tinha sido entortado talvez porque tivessem perdido a chave do cadeado que o trancava.
Subimos até à lâmpada e ela continuava girando mesmo com o farol desligado. O vento lá fora rugia e pelo fato de estarmos a cento e quarenta metros de altitude, sem proteção natural de espécie alguma, a velocidade das rajadas passavam de oitenta por hora. Descemos até a base do farol e ficamos lá por meia hora jogando conversa fora, até que a tempestade diminuísse.
Conversando com o Paulo, ele me disse que a água que descia pela trilha que utilizamos parecia cachoeiras e que aconselhava à gente a esperar um pouco mais. O Daili deu uma averiguada no lugar e viu o heliponto que uns médicos tiveram que providenciar anos atrás, porque não conseguiram atravessar a barra por dias e estavam literalmente ilhados.
Descemos e pegamos o botinho para voltar ao barco. Ao chegarmos, o Ênio e o Helinho felizes da vida porque utilizaram da chuva para tomar um banho de água doce, de sabonete no convés...
O barqueiro conversou conosco sobre uma preocupação dele: o tempo estava tendendo a virar, e se ventasse desta maneira a noite toda, talvez não fosse possível passar a barra no dia seguinte. Sugeriu que atravessássemos a barra hoje, dormíssemos no Mar Pequeno e no domingo, se a barra estivesse permitindo voltaríamos ao Bom Abrigo. Concordamos rapidamente, mesmo porque já eram sete da noite e logo anoiteceria...
Iniciamos a travessia e a barra calminha da manhã tinha sumido. Voltara ao seu normal, sem muito escândalo, mas o normal para lá é ondas bem maiores que normalmente se cruza. Os gaiatos no navio, meio assustados com a alteração do mar, se refugiaram na cabine, alguns até colocando coletes salva-vidas. O barco balançava bastante e outro barco resolveu seguir a nossa atitude e seguia quinhentos metros atrás. A noite foi caindo e entramos no Mar Pequeno com as luzes do barco acesas.
No Mar Pequeno, a maré causa uma correnteza forte, e a chumbada não pára no fundo. Toca colocar mais peso prá quem quiser pescar. Eu e o Ednei resolvemos preparar a janta: macarrão com molho. Com o espaço mínimo que disponíamos, foi malabarismo e mais malabarismo para fazer uma e depois outra panelada de macarrão. Saiu bem gostoso, já descontando a fome que estávamos!
Dez horas da noite, todo mundo jantado, alguns insistindo em pescar, eu fui para a proa do barco, onde estava sem iluminação e fiquei a apreciar a claridade que a ardentia causava, na sua corrida pela maré, chocando-se com a corda da âncora. Ardentia é o plâncton fosforescente ao contato, que diverte os observadores noturnos no mar. Da corda da âncora, parecia sair um véu de luz meio fantasmagórica.
Hora de dormir. Seis atolados dentro do barco e mais três dormindo no convés. Durante a madrugada, o Paulo, devido ao vento frio, desistiu do convés e correu para dentro.
Domingo, dia 17
Todos mal dormidos, acordamos no primeiro dia sem horário de verão. Seis da manhã pelo novo horário, preparamos um leite com chocolate para quem quisesse e saímos a pescar. O rugido das ondas na barra indicava que tínhamos optado pelo certo. Ia ser complicado passar aquilo, mas é melhor não conseguir ir do que não poder voltar. No mais, acho que mesmo se a barra estivesse calminha, fazendo uma votação entre o pessoal e não íamos voltar ao Abrigo hoje.
Pescamos defronte à ponta sul da Ilha Comprida e nada de peixe. Vez ou outra, um pequenino, que não chegava a um palmo, batia e era jogado de volta à água. Nem baiacu, a tragédia e praga daqueles mares, aparecia.
Ficamos a nos divertir com as gaivotas pousadas na praia, com os golfinhos perto da Ilha do Cardoso, com piadas que surgiam a cada minuto e com as ligações telefônicas que quem trouxe celular estava conseguindo fazer. Tentávamos prever o que cada um que ligava para a mulher iria dizer. O Gerson sofreu muito com seus “Oi. Nenê”, tanto que ganhou o apelido de Pepê. O Ênio, que não é flor que se cheire, desistiu até de pescar só prá ficar atazanando a vida dos demais.
Meio dia, sem peixe nenhum que valesse a pena ser contado, a não ser o espada e um sargo pescados pelo Paulo, decidimos regressar a Cananéia. No caminho de volta, mais golfinhos, chamados de botos por aqui e logo estávamos em terra.
Convencemos o seu Antônio, japonês dono do hotel, a nos deixar tomar um bom banho, colocamos as bagagens na van, votamos a ida ou não da caixa de isopor na van e resolvemos fazer uma vaquinha prá comprar outra lá. Rumamos para Sorocaba, onde chegamos por volta das seis da tarde.
De tudo o que fizemos e do que não fizemos, fica a tremenda lição: de que pescar é toda uma gama de opções e situações, de dependência de condições na maioria críticas que, para se aproveitar uma pescaria deve-se prestar atenção à imersão na natureza que o cerca e o instrui. Das mensagens dadas pelas nuvens, indicando o tempo bom ou ruim. Do mar, que mesmo apenas levemente indisposto, sacode um barco de dez metros com uma folha de jornal. Pescar é aproveitar isto, sabendo que o lugar do peixe, no final das contas, é exatamente este: um mero detalhe.











