Caminho de Santiago • Pedalada Número Três • A Taberna do Índio Araucano

De Pamplona até Estella, num trajeto de 52,26 km, numa média de 12,3 km/h, com variação de altitudes desde 400 m a 800 m.

Acordamos refeitos, de um sono bem dormido, e prontos para o terceiro dia no pedal. Prá completar, o dia amanheceu com sol! Devido aos dois últimos dias, nada melhor que um solzinho prá renovar nossos ânimos e reiniciar a pedalada...

Tomamos um cafezinho com pão e lá vamos nós rumo a Estella! Ainda em Pamplona, passamos pelas muralhas que aquela cidade tem, restos de uma fortificação de 75 a.C. Logo saímos da cidade e deparamos com mais algumas subidinhas que teríamos no cardápio do dia...

O Paulo, a Malena e o Diniz resolveram não encarar o Alto del Perdón e seguiram pela carretera, enquanto o resto de nós subimos a longa trilhazinha até onde o vento encontra as estrelas. Antes passamos por Zariquiegui, uma vilinha sem ninguém nas ruas, somente com uma fonte de água e uma igreja, a de San Miguel.

Na subida, íngreme e acidentada, era engraçado ver o semblante de triunfo dos peregrinos a pé, ao nos ultrapassarem, porque a via era estreita e era muito mais fácil subir com uma mochila nas costas do que com uma bike nos braços. Ali não tinha jeito! Muito do percurso tinha que ser empurrando a bicicleta e durou bastante este trajeto.

Subindo, a gente ia tendo uma visão melhor do que já tinha percorrido e um ciclista local nos informava que aquelas montanhas ao longe, brancas de neve, foi por onde tínhamos passado. Explicou também que a imensa "plantação" de moinhos, na maior usina eólica que já vi, deveria dentro de alguns anos fornecer energia para 90% da Espanha. Mais um motivo de orgulho para o já orgulhoso povo, que insiste em ter os nomes das localidades em espanhol e em basco.

Naquela subida, fonte de várias lendas do Caminho, existia a da fonte seca, a Fuente de la teja, onde o demônio tentava os peregrinos, oferecendo água aos que renegassem sua fé. No Alto del Perdón, uma surpresa! Uma escultura muito bonita, de peregrinos estilizados, marcava onde o Caminho dos Ventos, representado pelos imensos moinhos, encontrava o Caminho das Estrelas, representado por nós mesmos, os peregrinos. Uma pena que não tinha nenhum peregrino de bicicleta. Acho que a maioria pega a rota que os outros três pegaram...

Conversamos ainda com alguns pamplonenses que achavam que a gente era alemão e ao descobrir que éramos brasileiros já foram perguntando sobre Paulo Coelho (ou Pablo Coello), alguns defendendo, outros criticando.

Hora de ir em frente! Eu e o João queríamos visitar a ermita de Santa Maria de Eunate, uma igreja erguida pelos templários no século XII e ponto obrigatório de passagem por toda sua simbologia. Eunate em basco significa cem portas e aquela construção octogonal, com um muro octogonal em volta, onde o peregrino escolhia uma porta para chegar à igreja, induzia-nos a ver os fantasmas dos cavaleiros e peregrinos que já passaram por ali, num exercício fácil de imaginação, devido à extrema força do lugar.

Como o local de encontro seria Puente de la Reina, e Eunate ficava fora, decidimos acelerar um pouco só para ver a igreja. O João, que acordou com uma disposição fora do comum naquele dia, virou prá mim e falou: "Tô feliz!" e desandou a descer pela trilha! Foram cerca de cinco quilômetros de adrenalina a mil, onde a bicicleta já pesada com os alforges desviava numa dança insana das pedras e buracos que a trilha nos oferecia... Logo chegamos ao asfalto e a Eunate.

Cheio de gente aquele lugar, mais do que a igrejinha comportava, e muitos ficavam de fora, aproveitando o raro sol dos últimos dias. Tiramos algumas fotos e rumamos para o ponto de encontro.

O João Feliz da Vida botou uma velocidade alta e logo eu o vi desaparecer na estrada. Como não tinha jeito de se perder, fui eu sozinho até Puente La Reina, onde encontrei os demais. Lá a gente ia almoçar e escolhemos uma rua bem bonita, onde comemos sanduíches (hamburguesa completa!) e ficamos a puxar convrsa com as outras mesas, de pessoas dali mesmo. Sabendo que a gente era brasileiro, perguntavam se conhecíamos pessoalmente o Roberto Carlos (no lo cantante, lo jugador de fútbol...) e depois de uma tempo, chegaram a Vânia e a Maria, morrendo de fome!

Na retomada da pedalada, uma parada na Ponte dos Peregrinos, construída no século XI pela rainha Munia, esposa de Sancho III de Navarra, para facilitar a passagem dos peregrinos sobre o rio Arga. É decididamente, a ponte mais bela de todo o Caminho, com seus arcos refletindo-se nas águas, formando círculos de imensa beleza. É em Puente de la Reina que o Caminho Francês, que a gente percorria, juntava-se ao Caminho Aragonês, que partia de Somport. A partir de agora, éramos peregrinos na mesma rota, rumo a Compostela.

Agora pedalando quase sempre pela trilha, eu estava me cansando mais do que esperava, e não entendia o porquê. Depois de findada a pedalada que percebi que meu banco tinha abaixado por causa do down-hill radical até Eunate e assim ficava muito difícil pedalar mesmo. Prá completar, acompanhei o João e o Paulinho, justamente os dois que tinham o ritmo mais forte do grupo...

E toca a pedalar! Subidas, descidas, um pouco de asfalto, outro tanto de terra, um bom trecho de um single track, que é onde você anda e ninguém consegue andar ao seu lado, tamanha a estreiteza do caminho. Em alguns momentos, não era nem possível ver o chão, de tão fechada a trilha, e os alforges raspavam dos dois lados na vegetação.

Chegamos então a um vilarejo chamado Cirauqui, que em euskera, a lingua basca, significa ninho de víboras. Eram cinco da tarde e ninguém nas ruas, parecendo uma cidade fantasma! O Caminho seguia or um túnel até os restos da calçada romana, atravessamos uma ponte destruída e pegamos a estrada de novo. Prá frente tinha mais estrada de terra, subidas e descidas. Tinha uma ponte medieval sobre o rio Salado, que com suas águas salobras causava muitos males aos cavalos de peregrinos de eras passadas.

Eu, que já vinha cansando em demasia, estava no jargão popular "no bico do corvo". Mas tinha ainda a cidade de Villatuerta antes de Estella e se tratava de mais uma cidadezinha onde as setas indicavam para subidas e descidas, num ziguezague maluco! Mais um pouco de estrada e por volta das sete da noite chegamos a Estella. Perambulamos pela cidade, subindo e descendo até encontrarmos o Diniz, o Paulo e a Malena para entrarmos no hotel e tomarmos um merecido banho.

Das duas meninas, nada! Resolveram fazer um trajeto somente pela trilha e foram chegar somente lá pelas nove da noite. Nisto eu já tinha passeado pela cidade e tirado algumas fotos da cidadezinha que surgiu por causa e para o Caminho.

Fundada em 1090 por Sancho Ramirez, Estella (ou Lizarra em euskera) tem até em seu nome as estrelas de Compostela. Com algumas igrejas, a maior parte em restauração, Estella é uma cidade de certo modo feia, mas reservava-nos um momento que com certeza seria por nós recordado por muito tempo.

Já era noite e como era feriado de primeiro de maio, tudo estava fechado. Fomos encontrar um barzinho, onde poderíamos comer algum sanduíche prá matar a fome grande que tínhamos. Encontramos um onde quem tomava conta era um tal de Mário, que o Paulo Sérgio identificou como descendente dos araucanos, uma tribo sulamericana. Ele nos contou que era argentino e fugira do país na época da ditadura e que agora vivia na Europa, muito longe de sua casa.

Gente boníssima, mostrava sua coleção de instrumentos musicais, contava-nos sobre seu povo, fazia piada sobre os portenhos, e a gente curtia prá valer o momento. O pessoal começou a ir embora, porque ele ia fechar, mas a gente ficou até uma da manhã, só alugando o Mário Araucano.

Ele colocou um CD de música brasileira, brincou conosco, leu nosso horóscopo araucano. Eu era coruja, só que quando ele falou o nome em espanhol (buho), eu na minha santa ignorância achei que era burro mesmo e não gostei. O burro era eu, agora concordo...

Prá lá de meia noite, a gente o convenceu de que ele deveria ter um carimbo, para selar as credenciais dos peregrinos que por lá passassem e ele, num lance, pegou um caderno e escreveu na primeira folha: Libro de Recuerdos de Peregrinos Aparecidos. O Aparecidos era porque somente os aparecidos naquela taberna poderiam escrever alí. Achei redundante, mas como soou legal, tudo bem. Escrevemos eu, a Maria e o João, já que o resto já tinha ido dormir. Prometemos indicar a taberna para os futuros peregrinos.

Para constar: na praça da igreja, de frente para a fachada, siga pela ruela esquerda. É um dos primeiros bares que se encontram por ali após a igreja. Perguntem pelo Mário que é argentino, que pelo tamanho da cidade todos devem saber...

Dormimos tarde aquela noite memorável, mas felizes por encontrar gente tão especial num lugar tão diferente.