Caminho de Santiago • Pedalada Número Quinze • Harmonia

De Arzua até Santiago de Compostela, num trajeto de 44,88 km, numa média de 14,8 km/h, com variação de altitudes desde 250 m a 300 m.

A previsão do tempo para hoje era chuva, sol, vento, chuva, sol, vento, frio, calor, etc. e etc. A chegada da frente fria bagunçava de tal maneira o tempo que não dava prá saber o que esperar. Parecia que todos os climas (menos a neve, por favor!) que pegáramos pelo Caminho vinham nos saudar na derradeira pedalada.

Eu estava tão feliz em ser a última vez durante um bom tempo em que acordaria cedo, arrumaria os alforges, colocaria minha roupa de ciclismo ainda não completamente seca (malditos hoteleiros! desligaram o calefador!) e pedalaria até mais um lugar desconhecido. Hoje era o dia...

Começamos a pedalar com garoa, que logo parou. Já não tinha mais o que poupar de energia para outros dias, então, pedalava com gosto! Meu ciclocomputador voltara a funcionar e, sim, minha roda estava firmemente presa! As duas! Verificadas várias vezes! Pecaria por excesso, mas de tempos em tempos dava uma olhadinha prá ver se ainda estavam ali...

Devido ao tempo ruim da tarde anterior, a gente deixara para carimbar a credencial hoje, mas chegando no albergue este estava fechado e ficamos de carimbar em alguma cidadezinha pela frente. Na verdade, o que menos me interessava agora era os selos. Meu último tinha sido em Palas de Rei e acho que o próximo seria somente em Santiago de Compostela. Uma neura a menos...

Por falar em neura, todos estávamos leves. Era aparente na feição de cada um o bom humor por estarmos finalmente chegando ao fim da longa jornada. Fomos em frente, pedalando sem pressa.

Estávamos eu, a Malena e o Paulo e chegamos na saída indicada para peregrinos, para o Monte do Gozo. Conseguimos nos confundir, mas quando estávamos para pegar o caminho errado, uma boa alma, uma mulher com um carro cheio de crianças, nos avisou que o caminho que estávamos saindo era o certo. Voltamos e continuamos, agora por uma trilhinha de terra.

O caminho subia e o caminho descia. Todos os peregrinos que cruzávamos nos saudavam com um forte "Bom Camino!" e a nossa resposta era prontamente ouvida. Bom Caminho! Estamos todos chegando! Hoje tem festa? Tem, sim senhor!

Conforme se aproxima do Monte do Gozo, o Caminho começa a fazer curvas e mais curvas. É como se todos ali quisessem compartilhar conosco da nossa alegria. Passamos em frente a uma igreja e quem saia dela nos saudava. Passávamos por casinhas e as pessoas na frente abriam um sorriso. Nem a chuva tão repentina como gelada que tomamos parecia nos afetar. Foi uma chuva interessante, porque veio acompanhada de um vento forte, de tal modo que somente um dos alforges ficou molhado! Parece até os elementos também queriam nos saudar...

O final era de subidas bem íngremes, mas eu não me importava mais. Parecia que os alforges já não pesavam tanto. Chegamos juntos no tal monte, e nos pusemos a procurar avistar a Catedral. Foi o Paulo que avistou primeiro, e uma fileira de árvores quase que a encobria, só deixando ver a ponta das três torres.

Tiramos fotos e comemoramos comendo o resto dos chocolates que tínhamos. Logo após chegou o Diniz, o João, o Paulinho e quando descíamos para um barzinho chegaram a Vânia e a Laurence.

Do Monte do Gozo, a gente via várias nuvens de chuva, que às vezes encobriam Santiago, às vezes vinham prá cima da gente. Reza a tradição que se desça do tal monte até a Catedral, cantando uma música bem legal. Eu escolhi uma que fiz há tempos, que dizia sobre o Deus grande que fez os céus, a terra e o mar, mas que prá mim, Ele era o maior na promessa de cuidar de mim. Cantei só pra mim, já que cada um devia ter na cabeça outras músicas. Principalmente o Paulo, com suas mais de 800 composições...

Fomos de mansinho chegando a Santiago. Percorremos a cidade e chegamos nas vielas próximas à Catedral. Já não chovia e estávamos de repente na praça do Obradoiro, em frente à tão falada Catedral. Tínhamos completado o Caminho! Fazendo as contas, foram 857 quilômetros. Desde a descida de Valcarlos, a chegada em Saint Jean, na França e até aqui, em frente à Catedral de Santiago de Compostela, da qual só tinha ouvido falar.

Tiramos um monte de fotos! O pessoal descobriu que a gente era brasileiro e se pôs a cantar Aquarela do Brasil, do jeito que estrangeiro canta: laralaralaralara, laralaralaralara, Brazil, Brazil... Brazil, Brazil... Um pessoal torcedor do time local, da segunda divisão do espanhol, chegou e quis tirar foto junto. A gente se divertia prá valer! O Paulo Gaúcho, que tinha ficado um dia a mais em Burgos, de repente apareceu e dizendo que tinha pedalado mais de cem quilômetros num dia, só pra recuperar o dia a mais passado em Burgos.

Eu pus minha bike nos ombros, com alforge e tudo. Meio que queria agradecer àquela maravilha mecânica, que tinha me transportado por todo o Caminho. Agora, eu é que a carregava e saudava a Catedral com a mão livre, dizendo: aqui estamos! Agora somos peregrinos!

Fomos almoçar e um senhor, vestido de peregrino, tomou vinho com a gente. Não me lembro seu nome e acho que nem perguntei, mas o que eu sei é que ele não gostava nem um pouco do Paulo Coelho. No dizer dele: "Lo Camino de la Espada que Pablo Coello habla no existe!". A gente estava realmente feliz! Ele ainda emprestou sua capa e chapéu e alguns de nós tiraram fotos de peregrino. Tudo era diversão...

Almocei o pulpo à galega, um polvo que estava bem gostoso! De sobremesa, um pudim de chocolate delicioso. À frente do restaurante, as nove bikes com os alforges finalmente descansavam...

Eu estava evitando entrar na catedral hoje. Queria entrar somente no dia seguinte, na hora da missa, e sabia perfeitamente porquê. O Caminho tinha me ensinado mais uma lição...

À tarde, um sol bonito me pegou passeando por um parque de onde se vê a Catedral ao longe, com o verde das árvores iluminado por aquele sol da tarde. Aqui e ali, crianças brincavam, jovens passeavam e velhos sentados conversavam. Só não tirei fotos porque estava sem minha câmera. Imperdoável, imperdoável...

Às seis horas, fui até a Praza de Praterias, cumprir minha parte do acordo de pagar mico em frente a mais uma webcam. Qual não foi minha surpresa ao rever o Cláudio e o Hélder, que estavam ali também. Dividimos a conta do mico, com o pessoal que passava ali nos olhando sem entender a bandeira do Brasil exibida para lugar nenhum. e nem adiantava explicar o que estávamos fazendo, era mais barato pagar o tal mico. Liguei depois prá casa e a primeira coisa que escutei foi:"NÓS VIMOS!!!". É realmente delicioso completar um sonho...

No dia seguinte, fui com o João retirar no Escritório de Peregrinos a nossa Compostelana. Fiz algumas comprinhas e rumei para a igreja, para a missa.

Agora é hora de revelar a última lição do Caminho: A Catedral é um lugar santo. Não pelos restos mortais supostamente do apóstolo Tiago. Não pela sua beleza, nem pelo ouro que ostenta. Não por sua importância ou pelo belo conjunto arquitetôtinco, patrimônio da humanidade. Santo quer dizer separado, e aquele templo havia sido santificado por tantos que por mais de mil anos, assim como eu, depositam seus sonhos em simplesmente chegar lá. Tive vontade de tirar meus sapatos ao entrar em território santo, mas a chuva e o chão todo molhado me impediu. Tirei em atitude, pelo menos.

Eu, que sou protestante de gerações, estava agora a assistir uma missa, com três padres, um em espanho, um em italiano e um em alemão, falando que onze peregrinos brasileiros vindos desde Saint Jean de Pied de Port estavam ali, com uma freira cantando lindamente os responsos e me sentindo parte daquilo. Agradeci a Deus novamente por não permitir que meu protestantismo todo me tapasse os ouvidos às belas histórias e não me vedasse os olhos às belezas que o Caminho oferecera.

Quando, ao final da missa, começou a cerimônia do Botafumeiro, um incensário gigante de prata, que seis monges balançam, num malabarismo maravilhoso, eu percebi o sentimento que tomava conta de mim e de todos meus amigos que ali estavam. Um sentimento que palavra nenhuma traduz melhor. Ao som do imenso órgão de tubo tocando, sentíamos o mesmo: harmonia.