Caminho de Santiago • Pedalada Número Dez • A Ponte do Cavaleiro, A Igreja do Povo e o Palácio do Bispo

De León até Astorga, num trajeto de 48,53 km, numa média de 17,0 km/h, com variação de altitudes desde 800 m a 900 m.

Mais um dia de pedalada leve nos esperava. Iríamos até Astorga, na nossa última etapa no mesmo terreno plano de dias. Cabia a nós tirar o máximo proveito de hoje, porque os próximos dias não prometiam facilidades...

Dez e meia da manhã e estávamos saindo de León, o que não era tarefa fácil, na cidade de 140.000 habitantes. Enfim conseguimos e de novo o pedal na mesma estradinha de pedriscos soltos, algumas vezes aparecia um asfalto, mas ainda era pouco...

Chegamos para o almoço em Puente y Hospital de Órbigo, palco de uma das mais famosas lendas do caminho a da Ponte do Passo Honroso. A ponte, que cruza o rio Órbigo, teve sua fama construída quando em 1434, um cavaleiro leonês, Don Suero de Quiñones, tremendamente apaixonado pela donzela mais bela da cidade, convidou nove amigos e desafiou a romper lanças com ele qualquer cavaleiro que quisesse dar o passo honroso em tal ponte. Durante um mês, cavaleiros de toda a Europa vieram e nada de conseguir passar. Diz a lenda que trezentas lanças foram partidas e somente um cavaleiro morreu, mas não se sabe se o cavaleiro era amigo ou inimigo. Após a feita, dDon suero e seus amigos marcharam, isto é, peregrinaram até Compostela, onde depositaram um bracelete do ouro que pertencera à dama. Este feito deve ter até feito Miguel de Cervantes imaginar Don Quixote, tamanha estupidez que, sejamos sinceros, estas brigas entre fanfarrões de armadura proporcionava. Deviam ser os hooligans medievais...

Carimbamos nossa credencial ao lado de tão ilustre ponte e aproveitamos para perguntar o nome de tão bela dama, já que em lugar nenhum conseguimos encontrar. A resposta foi dona Leonor de Tovar. E provavelmente o cavaleiro conquistou a donzela, pois um pouco antes, em Bercianos del Real Camino, existe na Iglesia del Salvador, uma tumba de uma certa Doña Leonor de Quiñones, uma nobre, datada do século XVI. Talvez fosse a própria donzela do Passo Honroso ou sua filha com Don Suero.

Almoçamos bem em Órbigo, com o dono do restaurante extremamente orgulhoso de nos fazer provar do melhor menu de peregrinos até ali oferecido e pusemo-nos na estrada de novo.

De "vento em popa", ao contrário do rompepiernas de dias anteriores, foi com facilidade que chegamos a Astorga, a ponto de o Diniz me desafiar para um quilômetro contra o relógio. "Você tá tomando drogas!", falei prá ele, assombrado de como estava bem o rapaz!

Em Astorga, capital da Maragateria, a primeira coisa que fizemos foi chegar à praça onde de um lado se tem uma catedral e de outro um palácio! Nosso hotel seria também nesta praça, realmente maravilhosa! Tomei banho rapidinho e armado da camera fotográfica, fui explorar a cidade. É pequenina, mas tem monumentos a dar com pau! Além da catedral e do castelo, possui ainda algumas ruínas romanas, um jardim onde já existiu uma sinagoga e com uma vista belíssima, as muralhas, reqsuícios dos tempos romanos e otras cositas más. Tem até um museu do chocolate, mas a gente não foi lá...

A catedral de Santa Maria é interessantíssima! Demorou mais de trezentos anos para ficar pronta e em todo este tempo os estilos arquitetônicos foram modificando. Então, o que se vê é uma mistura de românico, barroco, renascentista, gótico e outros estilos que não sei definir. Olhando de lado, até as cores das suas partes são diferentes!

Entrei na Catedral e vendo suas imagens e monumentos, prendeu-me logo a atenção algumas lápides. Eram de três enfermeiras que morreram como mártires num conflito, em 1932. De outro lado, havia os restos de um soldado de feitos heróicos, do século XIX. Para coroar toda esta participação popular, no topo de uma das torres da igreja, vê-se a figura de Pero Mato, um alferez maragato que participou da batalha de Clavijo. Era uma igreja onde o povo tinha seu espaço, ao lado de santos e papas. De tempos anteriores, de inquisição e terror, vê-se ao lado da catedral uma arena de julgamento, onde a cela do prisioneiro é uma gradinha aos olhos de todos seus inquisidores e de onde ele sai de lá somente para ser executado. "In Pacem" era seu nome e impasse este foi o povo que resolveu, tomando posse da catedral, com suas vidas e feitos.

Segui para o tão falado Palácio Episcopal, erigido por Gaudí, construído entre 1889 e 1913, depois que um incêndio destruiu a antiga residência do bispo. Parece um palácio da Disneylândia, por fora e por dentro, e hoje abriga o Museo de Los Caminhos, cobrando uma taxa de 250 pesetas para visitá-lo.

O que mais se vê lá dentro são imagens de Santiago, tanto a versão light, o Santiago Peregrino, com seu cajado, seu chapeu e sua capa, como a versão filho-do-trovão, o Santiago Matamoros, que dizem que apareceu com sua espada a pelejar pelos cristãos em várias batalhas, matando os gentios mouros como quem mata formigas. Resta lá dentro também o trono do bispo, de pedra, gelado como ele só. Seus vitrais e torres, frios como o trono, só completam a beleza e a lembrança de um lugar que não tem nem um século e já mudou de dono. Que bom que foi para um dono melhor...

Jantar à noite foi num restaurante pitoresco, onde o dono até nos brindou com aguardente de café, tão forte que só o cheiro já deixava zonzo... Para dormir, gostaria que estivesse um pouquinho mais quente para deixar a janela aberta com a vista do palácio. Mas com frio daqueles e o tempo piorando, prefiro sem vista mesmo, mas quentinho...